A “raspadinha” representa a taxa mais baixa do jogo patológico?

Em entrevista ao JN/TSF, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Edmundo Martinho, afirmou que, “no universo mais vasto dos jogos a dinheiro, a raspadinha é a que representa a taxa mais baixa do jogo patológico”, referindo-se a dados do SICAD.

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Miguel Manso

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“Aliás, se olharmos para aquilo que é o estudo do SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e Substâncias], que é o organismo público que tem responsabilidade de olhar para este assunto, no universo mais vasto dos jogos a dinheiro, a raspadinha é a que representa a taxa mais baixa do jogo patológico, curiosamente.”

Edmundo Martinho, provedor da Santa Casa de Misericórdia

O contexto

O lançamento da chamada “Raspadinha” do Património, uma iniciativa do Governo em parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, tem motivado críticas e alertas, nomeadamente do Conselho Económico e Social e de alguns especialistas, que se mostram preocupados com o potencial adictivo e com o impacto no rendimento das famílias.

A Santa Casa da Misericórdia tem, porém, rejeitado as críticas segundo as quais o jogo da raspadinha constitui um problema de adicção. Ao PÚBLICO, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Edmundo Martinho, já tinha, antes do lançamento da iniciativa, afirmado não ter “qualquer estudo que indique que a ‘raspadinha’ é um vício, o que não quer dizer que não possa haver pessoas com esse problema, mas transformar isso num problema social é excessivo.”

À data, porém, o director do SICAD foi um, entre outros, dos que não escondeu preocupação com o tema, considerando que quanto mais imediato o resultado do jogo, maior o potencial adictivo. João Goulão afirmou ao PÚBLICO que “aquilo que é reconhecido em termos científicos é que quanto mais imediato o resultado do jogo maior o potencial adictivo”: “A ‘raspadinha’ tem peso em determinados grupos, como mulheres e pessoas de fracas posses, que estoiram o ordenado e a pensão na ‘raspadinha’. A nossa percepção em relação à ‘raspadinha’ é de grande preocupação em relação ao potencial adictivo e de empobrecimento das famílias.”

Mesmo tendo em conta os números divulgados no início de Junho pelo SICAD, este organismo mantém preocupação com o perfil de vulnerabilidade de quem joga raspadinha e com o actual contexto de crise económica motivado pela pandemia.

Os factos

O SICAD divulgou, no início do mês, uma brochura com dados relativos à raspadinha e são estes os referidos por Edmundo Martinho na entrevista ao JN/TSF. O que o SICAD fez foi analisar e isolar dados especificamente sobre “raspadinhas” a partir do Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoactivas na População Geral Portugal 2016/17 (CICS.NOVA). De acordo com esses dados, três em cada 10 jogam ‘raspadinha’ (30,7%)”, sendo, a seguir ao Euromilhões, “o jogo a dinheiro mais mencionado”.

O documento do SICAD refere vários outros dados, mas em concreto sobre o potencial adictivo, o que é mencionado é que, no global, 96,5% dos jogadores de “raspadinha” são recreativos; 2,5% abusivos; e 1% são patológicos, o que corresponde a cerca de 24 mil residentes.

Em particular, lê-se que “a prevalência de jogo patológico é muito superior entre os jogadores que, para além da ‘raspadinha’, jogam jogos não institucionais (3,2%)” e que “entre as pessoas que jogam exclusivamente ‘raspadinha’, 2,4% jogam de forma abusiva e 0,4% têm um perfil de jogo patológico”.

Jogadores que não jogam “raspadinha”: 96,2% recreativos, 2,3% abusivos, e 1,5% patológicos;

Jogadores que jogam apenas “raspadinha”: 97,2% recreativos, 2,4% abusivos e 0,4% patológicos;

Jogadores que jogam “raspadinha” e apenas outros jogos institucionais: 97,7% recreativos, 1,9% abusivos, e 0,4% patológicos;

Jogadores que jogam raspadinha e outros jogos, incluindo não institucionais: 92,5% recreativos, 4,3% abusivos e 3,2% patológicos;

O mesmo documento nota ainda que “quando se caracterizam os jogos dos jogadores recreativos, abusivos e patológicos, verifica-se que a percentagem de jogo da ‘raspadinha’ é menor entre os jogadores patológicos”.

Jogadores recreativos: 40,2% joga “raspadinha” e apenas outros jogos institucionais, 36,3% não jogam raspadinha, 13,9% jogam raspadinha e outros jogos, incluindo não institucionais, e 9,6% só “raspadinha”;

Jogadores abusivos: 33,5% não jogam raspadinha, 31,6% jogam “raspadinha” e apenas outros jogos institucionais, 25,7% jogam “raspadinha” e outros jogos, incluindo não institucionais, e 9,2% jogam só “raspadinha”;

Jogadores patológicos: 45,6% não jogam “raspadinha”; 39,3% jogam “raspadinha” e outros jogos, incluindo não institucionais; 11,8% jogam “raspadinha” e apenas outros jogos institucionais; e 3,3% só “raspadinha”.

O documento acrescenta que “entre 2012 e 2017 a prevalência de ‘raspadinha’ aumentou de 24,4% para 30,7%” e que “tanto nos que jogam raspadinha, como nos que não jogam, aumentou a prevalência de jogo abusivo”.

Jogadores que não jogam “raspadinha”: entre 2012 e 2017, os jogadores recreativos passaram de 99,4% para 96,2% 2017; os abusivos de 0,4% para 2,3%; e os patológicos de 0,2% para 1,5%.

Jogadores de “raspadinha”: entre 2012 e 2017, os jogadores recreativos passaram de 98,3% para 96,5%; os abusivos de 07% para 2,5%; e os patológicos mantiveram-se em 1%.

O SICAD apresentou estes dados “consciente da preocupação cada vez maior com os comportamentos relacionados com o jogo e com a crescente gravidade do jogo a dinheiro, nomeadamente o que seduz pelo resultado imediato”. Verifica-se ainda que o perfil dos jogadores de raspadinha indica que “mais de metade são mulheres entre os 35 e os 54 anos, com habilitações relativamente baixas e rendimentos entre 500 e 1000 euros mensais”.

Em resumo

É verdade que no documento do SICAD se pode ler que, “quando se caracterizam os jogos dos jogadores recreativos, abusivos e patológicos, verifica-se que a percentagem de jogo da ‘raspadinha’ é menor entre os jogadores patológicos”. Tal refere-se, contudo, à percentagem dos que jogam apenas na raspadinha, podendo incluir-se também a dos que jogam na “raspadinha” e apenas noutros jogos institucionais. Ou seja, no universo de jogadores patológicos, 45,6% não jogam raspadinha; 39,3% jogam raspadinha e outros jogos, incluindo não institucionais; 11,8% jogam “raspadinha” e apenas outros jogos institucionais; e 3,3% só “raspadinha”. Apesar de, globalmente, 1% de jogadores de raspadinha serem patológicos, a prevalência de jogo patológico divide-se da seguinte forma: 1,5% de jogadores patológicos entre os que não jogam “raspadinha”; 0,4% entre os que jogam apenas “raspadinha”; 0,4% entre os que jogam raspadinha e apenas outros jogos institucionais; e 3,2% entre os que jogam “raspadinha” e outros jogos, incluindo não institucionais. Quando Edmundo Martinho refere os dados divulgados pelo SICAD e diz que “a raspadinha é a que representa a taxa mais baixa do jogo patológico”, tal corresponde aos números avançados pelo SICAD, tendo em conta a forma como o organismo os agregou e tendo em conta quem joga apenas raspadinha: no universo de jogadores patológicos, 3,3% joga exclusivamente na “raspadinha” e, entre quem joga só na “raspadinha”, 0,4% apresenta jogo patológico. Porém, para se apurar em detalhe o alcance da afirmação do provedor, os dados teriam de ter sido agregados ou analisados de outra forma, jogo a jogo, quando o que acontece é que estão por grupos (quem não joga “raspadinha”, quem só joga “raspadinha”, e dois grupos que a jogam em conjunto com outros jogos). Parcialmente verdadeiro.