O último a ficar (a)paga a conta

Pressiona o teu governo a seguir o exemplo australiano. Escolhe um dia por semana para não frequentares plataformas como o Facebook, privando-as do teu quinhão para o bolo de receita diário. No fundo, saibamos virar o feitiço contra o feiticeiro. Porque quando todo(a)s ameaçarmos sair, é o último a ficar que (a)paga a conta.

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Reuters/Dado Ruvic

Vou arriscar a assunção de que fazes parte dos/das cerca de seis milhões de portugueses/portuguesas com uma conta na rede social mais famosa do mundo para te dar uma novidade, daquelas que não se recebem todos os dias: trabalhas para a Facebook e não sabias.

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Vou arriscar a assunção de que fazes parte dos/das cerca de seis milhões de portugueses/portuguesas com uma conta na rede social mais famosa do mundo para te dar uma novidade, daquelas que não se recebem todos os dias: trabalhas para a Facebook e não sabias.

Enquanto os teus olhos faziam a transição para este parágrafo, o teu cérebro provavelmente perguntou-se: “OK, como é que eu trabalho para o Facebook e onde é que está o meu salário?” Nesse capítulo, temo não ter boas notícias para te dar. 

À boa moda de uma distopia futurista, o teu trabalho é invisível e provavelmente consentiste-o sem saber. Quando a rede social em questão pede para aceder às informações do teu perfil antes de jogares um qualquer jogo nela embutido, ou quando experimentas o filtro de envelhecimento facial mais recente, regra geral aceitas. Não porque queres que essas informações sejam vendidas a empresas que procuram chegar com cada vez maior precisão a potenciais clientes, mas porque simplesmente tens uma curiosidade primária em conhecer o teu aspecto daqui a 30 anos, ou porque queres matar tempo com um puzzle divertido e colorido. 

Quando fazes “gosto” nas tuas séries favoritas, nas bandas que ouves, em marcas de roupa, nos órgãos de comunicação social que privilegias e nas notícias cujos temas te dizem mais, estás a desenhar o teu perfil de consumidor(a) e de cidadão(ã). Achavas mesmo que esta informação ia ser desaproveitada por empresas em detrimento de gastar uma fortuna num anúncio de televisão que tu vais saltar imediatamente com recurso ao zapping? Por partidos políticos e outras organizações que procuram uma implementação e fidelização rápida? A verdade é que os teus dados pessoais são mesmo vendidos a entidades que compram publicidade no espaço do Facebook, sendo esta a maior fonte de receita da empresa. Valem, portanto, dinheiro, muito dinheiro. 

Por esta altura já percebeste como é que “trabalhas” para o Mark Zuckerberg (também trabalhas para outras gigantes da tecnologia, mas não vale a pena deprimir-te com mais informação sobre o real estado da apropriação por terceiros do valor que tu geras). Contudo, ainda não conseguiste identificar onde é que está a tua justa remuneração pelo “serviço” prestado. É normal, ela não existe.

Terá de ser sempre assim? Numa época onde a expressão “novo normal” passou a fazer parte do léxico corrente e nos obriga a definir o que é que estamos disposto(a)s a aceitar como regras de vivência e organização societal, o governo australiano deu o primeiro passo daquela que, desejavelmente, será a resposta internacional a esta realidade: se o utilizador gera valor monetariamente mensurável e materializado em lucro destas empresas, cabe-lhe, por lei, uma porção do mesmo.

O braço de ferro será intenso e as gigantes tecnológicas não jogam com apenas um braço. Como se costuma dizer noutras lides, o “campo está inclinado”. Exemplo disso foi a retaliação à “afronta” australiana, suprimindo-se por completo o acesso dos locais aos conteúdos dos órgãos de comunicação social alojados no Facebook. Porque é que a gigante norte-americana se pode dar ao luxo de recorrer a esta exibição de força? Porque se tratou-se de uma acção de um país que, isoladamente, não tem força. Cujo mercado pode ser dispensado momentaneamente até que a pressão dos anunciantes e o lobby junto do governo faça o seu trabalho e lhe quebre o ímpeto legislativo.

Mas, pergunto-te: e se os australianos não estiverem sozinhos? Tal como as conquistas dos direitos laborais pós-revolução industrial nunca se teriam concretizado sem um esforço colectivo de luta e reivindicação, exige-se hoje uma nova onda de solidariedade internacional que empreste mais braços a esta disputa e obrigue ao desmantelamento do poder excessivo dos gigantes digitais. 

Pressiona o teu governo a seguir o exemplo. Escolhe um dia por semana para não frequentares estas plataformas, privando-as do teu quinhão para o bolo de receita diário. No fundo, saibamos virar o feitiço contra o feiticeiro. Porque quando todo(a)s ameaçarmos sair, é o último a ficar que (a)paga a conta.