A escola é para quem? Pela descolonização curricular

Encontramos frequentemente nos manuais escolares discursos pedagógicos que sustentam uma naturalização da escravatura e das relações opressivas e de dominação. O colonialismo é um processo exposto como uma missão civilizatória, que dá “novos mundos ao mundo”.

Foto
rui gaudencio

A escola pública foi, é e será, para milhares de estudantes, uma janela para o mundo, um gerador inigualável e um mecanismo fundamental na luta pela igualdade e justiça social. É inegável, no entanto, o modo como continua a empurrar milhares dos estudantes para fora das nossas instituições.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A escola pública foi, é e será, para milhares de estudantes, uma janela para o mundo, um gerador inigualável e um mecanismo fundamental na luta pela igualdade e justiça social. É inegável, no entanto, o modo como continua a empurrar milhares dos estudantes para fora das nossas instituições.

São diversas as condicionantes que geram tal fenómeno social, sendo mais evidentes as socioeconómicas que são evidenciadas pelo obstáculo constituído pela propina, a real consubstanciação da elitização do ensino superior. Este valor tem vindo a aumentar crescentemente desde o valor simbólico com que foi proposta, sofrendo drásticos aumentos (por exemplo, aumentando 21, 5% entre 2003 e 2012, de 852 euros para 1036), tornando-se um valor incomportável para a maioria das famílias (ressalva-se o facto de Portugal ser o país em que as propinas são principalmente suportadas pelo elo familiar, impondo-se como 64 % deste orçamento).

Este factor dificulta ainda mais a acessibilidade deste sector a grupos socialmente minoritários e desfavorecidos. Se olharmos para o panorama afro-descendente em Portugal, rapidamente identificamos esta correlação entre precariedade e origem étnica que se explica pela profunda história colonial e imperialista portuguesa. Este passado gera profundas assimetrias no acesso a condições essenciais, perpetuando barreiras geracionais e impedindo reconhecer, confrontar e resolver o racismo estrutural embrenhado na sociedade portuguesa contemporânea.

A forma actual como concebemos os currículos escolares, o modo como olhamos para a História nacional reflectem ainda essa visão antiquada, pouco inclusiva sobre a nossa nação. Impera trazer as nossas escolas para o século XXI, olhá-las de forma actual e tornar a construção curricular um espaço de disputa entre grupos hegemónicos e grupos subalternos. Segundo Sonia Carbonell, a produção do olhar possibilita que os educandos possam abrir-se “(...) à aprendizagem, eles vêm para a sala de aula com um olhar que é, por um lado, um olhar receptivo, sensível e, por outro, é um olhar activo: olhar curioso, explorador, olhar que investiga e olhar que pensa”.

Surgiu daí a questão de descolonização curricular (que não implica, de modo algum, apagar o conhecimento europeu ou substituí-lo), pois ao descolonizar o conhecimento, os currículos escolares também serão descolonizados, criando oportunidades para que o ambiente escolar seja muito mais plural e democrático. A proposta de diálogo no ensino pode promover um repensar crítico sobre as imagens irreais construídas sobre África, à medida que compreende que os sujeitos educandos, jovens e adultos, podem actuar criticamente sobre a realidade e transformá-la.

Mayana Nunes, escritora nigeriana, classifica a descolonização curricular como “o resultado dos esforços teóricos e epistemológicos dos povos subalternizados/colonizados da América Latina, Ásia e África em mostrar que existe toda uma produção de conhecimentos historicamente invisibilizada em favor de uma ciência europeia ocidental que se construiu como a única capaz de produzir saberes objectivos, neutros e que se propõem enquanto universais.” Evidencia-se, portanto, a luta contra a visão eurocêntrica das sociedades africanas, que nega o reconhecimento do seu passado histórico-cultural antes do seu contacto com a cultura ocidental.

Estas narrativas perpetuadas pelo sistema educativo português tendem sistematicamente a uma exclusão e inferiorização das pessoas racializadas, reforçando processos de assimilação de uma ideia de “hierarquia racial”. Encontramos frequentemente nos manuais escolares discursos pedagógicos que sustentam uma naturalização da escravatura e das relações opressivas e de dominação. O colonialismo ("Descobrimentos") é um processo exposto como uma missão civilizatória, que dá “novos mundos ao mundo”. Esta construção social falaciosa e eurocêntrica apoia-se numa estratégia falaciosa e eurocêntrica da história que se apoia numa estratégia de silenciamento da opressão, dominação e violência colonial. As investigadoras Marta Araújo e Sílvia Rodrigues “verificaram que é também comum o silenciamento da luta política pela libertação”, sendo que os manuais escolares reproduzem a desumanização enquanto apresentam os outros seres humanos como seres passivos, incapazes de reagir a situações de violência, de pensar politicamente e de responder a relações de poder.

É altura de olharmos para o nosso sistema de ensino e questionarmo-nos se é este o caminho que queremos traçar para as nossas sociedades. Reflectir sobre o que significa educação verdadeiramente emancipatória que é para todos e para todas, independentemente da sua etnia, do seu género, da sua condição socioeconómica. A luta por um ensino, público, gratuito, democrático e inclusivo nunca se mostrou tão urgente.