Da congratulação à revolta. Como é viver no último lugar ou no top da covid-19

“Estamos a zeros” é agora o slogan de Vila Velha de Ródão, à beira Tejo e sem covid-19. Já em Freixo de Espada à Cinta, a duplicação de casos em 15 dias deixou o povo em choque

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Júlia, Justina e Almerinda até podem ter receio por elas e pela família, compreender as regras e cumpri-las à letra. Dão valor ao que está a ser feito por cada um individualmente e juntos através das medidas aplicadas pela sua autarquia para conter a covid-19. Até porque os resultados estão à vista no concelho de Vila Velha de Ródão. Com 1700 residentes na vila e 3500 habitantes em todo o município, não teve nenhum caso desde 12 de Novembro. E, ao longo dos nove meses de pandemia, teve apenas 36 infectados, nenhuma morte e nenhuma hospitalização.

Mas viver numa bolha não estava nos planos, numa fase da vida em que Júlia, Justina e Almerinda já não esperavam fazer conquistas e muito menos vir a perdê-las de um dia para o outro. Foi o que sentiram quando em Março a Academia Sénior fechou. “O convívio era lindíssimo”, diz Júlia sobre as aulas, as visitas temáticas e outras actividades que lhes abriram horizontes.

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“A Academia Sénior tinha conseguido criar uma série de rotinas e agora nota-se que as pessoas estão a ressentir-se da sua suspensão. Estamos a falar de uma população mais frágil, que precisa de estar ocupada. Também a família não vem de fora por precaução. Estão mais isoladas, mais sozinhas. Às vezes, só precisam de um telefonema, de uma breve visita. Precisam de alguém que as oiça e com quem partilhar a sua experiência”, explica Ana Carmona, professora voluntária de Jornalismo da Academia Sénior e técnica superior de comunicação do Centro Municipal de Cultura e Desenvolvimento de Vila Velha de Ródão.

“Tínhamos tudo preparado para retomar as aulas em Outubro, mas não reabrimos. Foi uma decisão muito difícil porque sabemos a falta que as actividades fazem a tantas pessoas. Mas não queremos aparecer nas notícias pelos piores motivos”, completa.

Tanto mais agora que são notícia, mas pelos bons motivos. O presidente da Câmara de Vila Velha de Ródão, Luís Pereira, faz humor com os vários telefonemas de amigos a dizer que querem ir passar o fim-de-semana ao concelho, para desfrutar de uma autêntica sensação covid-free. “Tenham calma”, responde-lhes. Não pode ser assim, diz. Proteger o concelho tem consumido tempo, dinheiro e recursos humanos.

As reuniões municipais são tomadas pelos procedimentos para manter o quadro presente. Reorganizar e rever a reorganização é agora habitual não só entre as entidades com responsabilidades no concelho, mas nas reuniões intermunicipais porque todos os dias é preciso ter atenção.

“Isto pode mudar a qualquer momento”, dizem várias pessoas. “Todos os dias, tenho pavor de deixar a minha filha na creche”, confessa Marlene Nunes, que trabalha no restaurante O Motorista e todos os dias se questiona como é que os patrões mantêm estas 40 mesas quase sempre vazias, e um prato do dia sempre a servir no local ou em take-away, quando antes tinham o dobro das mesas e muitos mais pratos à escolha. 

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Na fábrica de papel CelTejo, os trabalhadores trabalharam em horários desfasados e fazem testes duas vezes por mês. Ricardo Lopes

O marido de Marlene, de 33 anos, trabalha na CelTejo, uma das grandes fábricas coladas à vila, onde as regras de higienização e contacto são de tal modo restritas, que ele diz sentir-se mais seguro no trabalho do que em qualquer outro lugar. 

O casal deixou de sair à sexta-feira à noite em Castelo Branco, quando a bebé ficava com a avó, também não mais combinou programas para a filha estar com outras crianças em casa ou no parque, ou fez as compras nos grandes supermercados. 

Marlene lamenta esta vida numa bolha. “Estamos a ensinar as crianças a partilhar com os amigos, e agora houve dois miúdos de oito anos repreendidos numa escola por terem partilhado o lanche de um deles. Como vamos explicar isto às crianças?”, questiona. 

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Ricardo Lopes

Como presidente da Câmara de Vila Velha de Ródão, Luís Pereira impôs desde cedo uma disciplina férrea, mas mais fácil de aplicar e cumprir por serem apenas 1700 habitantes na vila e 3500 no concelho. A baixa densidade populacional ajuda muito, começa por dizer. Mas também a aquisição de mil testes pela autarquia desde muito cedo, e a compra de um novo lote de 1000 para garantir que todas as pessoas próximas de um caso suspeito possam saber se foram infectadas. 

A informação é fundamental para a prevenção, sublinha. Saber através das autoridades de Saúde quem estava infectado ajudou muito na prevenção, mas tal deixou de ser possível com as restrições subjacentes à protecção de dados. Luís Pereira dá o exemplo da colaboração na partilha de informação entre a câmara, as entidades de saúde locais e as empresas, que tem sido importante para prevenir que um caso se transforme num foco de covid-19. 

Saber de um caso num concelho vizinho implica logo identificar todos os contactos dessa pessoa em Vila Velha de Ródão, isolar e testar as pessoas para garantir que não existem surtos a atravessar municípios, continua o autarca, que preside a esta câmara desde 2013. “Se não tivermos informação, não é possível agirmos.” Por isso, defende “uma adequação legislativa” para permitir uma identificação das pessoas infectadas com o único fim de prevenir todas as outras. 

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Ricardo Lopes

Também nos quatro lares de Instituições Particulares de Solidariedade Social e nos dois lares privados, onde só houve o caso de um funcionário infectado, a doença foi contida.

“Nós sabemos que as medidas adoptadas são dolorosas para as famílias e para os utentes”, diz Luís Pereira. Mas entre isso e o risco, opta por isso. “O drama para as pessoas mais velhas é não saberem se ainda estarão cá quando tudo passar”, diz Ana Carmona a propósito de todas as privações dos contactos e dos afectos, para os que vivem nas suas casas ou nos lares. 

Nas residências para idosos da Santa Casa da Misericórdia do concelho, não há visitas desde Março, em nenhuma circunstância. E qualquer utente que entre pela primeira vez no lugar fica obrigatoriamente num quarto isolado durante os 14 dias, apesar de fazer o teste e este dar negativo.

O mesmo acontece com qualquer pessoa que saia para uma consulta ou uma ida ao hospital. Acontece com os doentes que fazem hemodiálise, e estes quase sempre ficam em isolamento porque, quando estão prontos para voltar a estar com os outros, saem de novo para o hospital”, diz o vice-provedor Joaquim Espírito Santo.

E como reagem? “Há aqui uma habituação.” Não manifestam a angústia pelo isolamento e solidão? “Já se habituaram. A maior parte recebia poucas visitas”, diz. Só na altura das festas, havia muitas visitas. 

No Verão, foi possível os residentes verem os familiares pelo vidro da janela ao mesmo tempo que falavam pelo telefone ou mesmo haver uma visita pontual. Mas só durante uma semana, até ser conhecido um surto numa aldeia de um concelho vizinho. 

Passados nove meses desde o início da pandemia, as ruas estão vazias, as casas fechadas e num ou noutro café apenas os decanos destas paragens que não dispensam uma cerveja ao balcão ou um café no exterior. Tudo como mandam as regras, que se substituíram à tradição.

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“As pessoas já não fazem sala”, diz Graciosa Nogueira, patroa do café-restaurante O Motorista, que continua a ser ponto de encontro mas com muito menos pessoas. As pessoas entram, bebem um café à pressa e não convivem, não fazem companhia umas às outras. 

Muito mudou, resume Graciosa. Como para Júlia, Justina e Almerinda, desde que a Academia Sénior fechou. “Não fechou. Suspendeu temporariamente as actividades”, corrige a coordenadora Alexandra Ventura. Um dia, a Academia retomará as aulas de música, pintura, teatro, dança, tecelagem, hidroginástica, ervas aromáticas e outras. “Um dia?”, pergunta Justina incrédula. “Quando? Isto não há meio de abrandar.” 

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Em Trás-os-Montes, o clima é de frio e de crispação

Pouco depois das 10h de quinta-feira, no centro da vila transmontana de Freixo de Espada à Cinta, são poucas as pessoas que circulam na rua. Próximo do edifício dos Paços do Concelho, numa rotunda, um grupo de funcionários camarários monta um presépio para assinalar que, ainda que com as condicionantes que poderão existir decorrentes da pandemia, o Natal está à porta. Do número reduzido de pessoas que estão nas ruas, poucos são os que se mostram à vontade para falar sobre a taxa de incidência de 2335 casos de covid-19 por 100 mil habitantes que de repente colocaram o concelho no top 3 de infecções. A justificação é sempre a mesma. Afirmam preferir estar caladas para não falarem sobre tudo o que queriam dizer.

Em Freixo de Espada à Cinta, que na última semana viu duplicar as novas infecções por covid-19, vive-se um clima de crispação entre alguns habitantes e a câmara municipal. Na origem desta celeuma, está um surto detectado na divisão de obras da autarquia. Onze funcionários — a divisão completa — terão ficado infectados após uma festa realizada no início de Novembro. A presidente da câmara, Maria do Céu Quintas, ao contrário do que dizem alguns habitantes, garante que o ajuntamento não terá ocorrido em instalações camarárias e atribui o novo foco de infecções por covid-19 a aglomerações de pessoas decorrente das actividades laborais e às deslocações entre concelhos.

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De manhã, são poucas as pessoas que circulam nas ruas de Freixo de Espada à Cinta. Nelson Garrido

No centro da vila, os comerciantes afirmam ter sentido uma quebra entre 50% a 80% da receita, por força do aumento de casos. Tudo isto depois de um Verão que, regra geral, consideram positivo, tendo-se registado um números de visitantes que superaram as expectativas, sobretudo de espanhóis e portugueses.

Nesta fase, já não acontece o mesmo. Num café local, um responsável pelo negócio acaba de receber um telefonema de um fornecedor para apurar as necessidades de um possível reabastecimento do stock. Não foi necessário fazer qualquer pedido. Nos últimos dias, diz-nos que tem sido assim por não se escoar o que já existe nas prateleiras. Quando se pergunta o nome do proprietário, a resposta é a mesma ouvida na abordagem a alguns habitantes que circulavam pelo centro. “Não quero falar porque, se abro a boca, não me calo”, ouve-se.

Cerca de meia hora antes, a presidente da câmara falava com o PÚBLICO no seu gabinete. Quando se perguntava qual seria a origem do foco de infecções na terra que até Setembro ainda não tinha registado qualquer caso positivo de covid-19, Maria do Céu Quintas remetia para um foco detectado em Setembro na aldeia de Poiares, onde testaram positivo “cerca de 20 pessoas”, associado à deslocação de gente da terra a Lisboa. 

Já o novo surto, que elevou Freixo de Espada à Cinta ao topo dos concelhos com maior incidência de novos casos, considerava estar directamente ligado à natureza das actividades laborais do concelho onde a agricultura ganha protagonismo. “Quem trabalha no campo vai para o campo, mas depois há sempre a merenda que é feita em conjunto. Mais cedo ou mais tarde, as coisas tinham de acontecer. Depois das vindimas e da apanha da azeitona, tinha mesmo forçosamente de acontecer”, afirma a autarca eleita pelo PSD.

De volta à rua, há quem alerte para uma festa que terá ocorrido na divisão de obras da autarquia, que terá juntado no mesmo local um número mais elevado de pessoas do que é recomendado pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) no novo estado de emergência, que eventualmente terá dado origem ao novo surto.

De acordo com o que o PÚBLICO apurou junto de fonte que preferiu não se identificar, terá existido um ajuntamento reunindo funcionários da divisão em causa. Por apurar ficou se o número de pessoas ultrapassava o permitido.

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Nos restaurantes da vila as quebras na facturação chegam aos 80%. Nelson Garrido

No dia seguinte à visita a Freixo de Espada à Cinta, em nova conversa com Maria do Céu Quintas, a autarca confirma ter existido um foco de infecção envolvendo 11 funcionários da câmara, todos eles da divisão de obras, ou seja, toda a secção. Mas nega categoricamente ter existido qualquer celebração ou festa em instalações camarárias. Fora das instalações, diz desconhecer ter existido. Embora, mais à frente, após questionada sobre se o número de pessoas presentes no alegado ajuntamento de funcionários da câmara que lidera ultrapassava o número recomendado pela DGS, afirme: “Eu não gosto de falar do que não sei porque acho que não é correcto fazê-lo. Se eu tivesse estado na festa e soubesse o que se passou, sim senhor. Mas eu não estive em lado nenhum.” 

O PÚBLICO perguntou o porquê de não ter ocorrido este surto entre fiscais, coordenadores, administrativos, engenheiros e arquitectos da divisão quando lhe foi perguntado no dia anterior qual teria sido a origem do surto. A autarca responde: “Não foi por nenhum motivo especial que não referi porque toda a gente sabe em Freixo que foi aquele sítio que esteve fechado [a divisão esteve encerrada durante 15 dias]. Assim como também há surtos noutros sítios, ninguém está agora aqui a apontar o dedo a este ou ao outro.”

Porém, refere outro foco de infecção ocorrido há duas semanas, com origem num jantar realizado para celebrar o aniversário de Afonso Lopes, presidente da junta de Lagoaça, que pouco tempo depois veio a morrer com covid-19. “No jantar do senhor de Lagoaça, que até faleceu, um senhor da oposição, que anda sempre a carregar na presidente, esteve lá presente. Eu não estive. As más línguas estão sempre a bater nisso porque a presidente tem de ir abaixo e a presidente tem de ficar mal vista. A minha consciência está tranquila”, afirma, defendendo existir uma campanha difamatória contra o seu bom-nome.

“As más línguas desta terra e os perfis falsos que andam sempre a bater na presidente é que andam sempre com essa história”, acrescenta, remetendo para o foco que deu origem ao encerramento da divisão de obras da câmara.  

Na vila, queixam-se sobretudo os proprietários de negócios que nas últimas semanas poucas vezes têm aberto a caixa registadora para guardar dinheiro. No antigo mercado municipal, onde agora funciona um hipermercado, uma florista, uma peixaria e uma charcutaria, tem-se sentido uma quebra na facturação. O hipermercado não tem filas nas caixas e, na banca da charcutaria de Vítor Filipe, o cenário é semelhante. “A quebra na facturação ronda os 50%”, afirma. Nas últimas semanas, desde que os números de infecções por covid-19 começaram a aumentar no concelho, diz ter existido uma diminuição no número de clientes. “Vivemos do mercado espanhol e ao fim-de-semana reflecte-se ainda mais”, atira.

Do mesmo queixa-se José Araújo, proprietário de um restaurante. À hora do almoço, o estabelecimento, onde só se entra depois de medida a temperatura, não está cheio, mas, tendo em conta as condicionantes, está composto — na vila, não há mais do que uma mão cheia de restaurantes. A falta de turismo ao fim-de-semana também se refectiu na receita, sobretudo por força do ajustamento do horário de trabalho. “Não faz sentido fecharmos às 13h. Para isso, preferimos estar fechados”, afirma. Já esteve em lay-off, com os quatro funcionários, mas no Verão passou por uma recuperação. “Nas últimas semanas, com o aumento de casos, voltámos a sentir uma quebra”, acrescenta.

Continua a aguentar o negócio também por não ter de pagar despesa de renda. Mas já há pelo menos um restaurante na vila que encerrou logo no início da pandemia e mais recentemente um bar.

No centro, Anabela Pires, de 25 anos, trabalha na manutenção de um dos canteiros da vila. Como grande parte das pessoas com quem falamos, afirma não ter sentido grande diferença na rotina diária da vila nas últimas semanas. “Continua igual ao que era desde Março”, atira. Mas aponta uma ligeira diferença no número de pessoas que se desloca aos cafés: “Eu também deixei de sair tantas vezes”, assegura. Mas para trabalhar, continua a fazê-lo: “Não posso trabalhar em teletrabalho”. ​