Carta aberta a Vicente Jorge Silva

Vicente amigo e camarada nas fainas de pôr de pé jornais, o que mais nos custa, mais me custa, não são as memórias que, de supetão, vêm ao pensamento e ao coração. São as saudades do tempo que gostaríamos, gostaria, de partilhar consigo.

Caríssimo Vicente,

A verdade faz-nos mais fortes

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Caríssimo Vicente,

Depois de uns tempos — talvez uns meses  sem notícias suas, temperadas é certo pela leitura das crónicas da última página do PÚBLICO, acabo de saber que o Destino o encaminhou para o Alto, diria eu, impenitente crente, que a Providência Divina o chamou ao convívio dos eleitos.

E, de repente, nós, que sabemos que esta vida é finita, conhecíamos as suas maleitas, mas pensávamos que a sua presença duraria muito mais entre nós  e bem precisávamos dela... —, demos connosco a lidar com um misto de recordação de mil memórias comuns e de outras mil saudades do que ainda sonhávamos viver consigo.

Mil memórias comuns. Da sua gargalhada esfuziante. Da sua inteligência implacável. Da sua análise contundente, quase mordaz.

Dos seus excessos  que não há toques de génio sem excessos, que nos faziam admirá-lo pela coragem, mas sofrer, por igual, pela incompreensão da generalidade dos concidadãos. Da sua escrita linear nas ideias, mas encaracolada, às vezes, na forma. Dos seus ímpetos criadores, interpolados de uma nostalgia insular, de uma solidão nunca assumida, de um querer viver em tempos e modos que já não entendia ou aceitava. Da sua luta por democracias não iliberais, por políticas não demagógicas ou espetaculares, por justiças sociais mais justas e mais rápidas, por uma mistura de empatia com os sofredores e de meritocracia intelectual.

E memórias das conversas no Funchal na pré-História. Ou das reuniões e charlas  sem número  no Expresso, das ceias no Pabe e no Xenu ou seu antepassado, das deambulações a conceber dois Expressos num só, com a Revista, dos choques das mortes dos entes mais queridos, dos sonhos para o PÚBLICO, das crenças e descrenças nas incursões políticas, nas madrugadas a falar do Portugal a fazer-se e do Portugal ainda adiado.

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Vicente foi o primeiro director do PÚBLICO: Alfredo Cunha

Vicente amigo e camarada nas fainas de pôr de pé jornais, o que mais nos custa, mais me custa, não são as memórias que, de supetão, vêm ao pensamento e ao coração. São as saudades do tempo que gostaríamos, gostaria, de partilhar consigo.

Como gostaria de ler a sua escrita sobre o pós-pandemia, na vida das pessoas, como na vida coletiva. Ou sobre o futuro nas relações entre os dois lados do Atlântico após estes dias que num caso eleitorais, noutro de arranque para novo ciclo. Ou sobre os poderes emergentes. Ou sobre os estilos políticos em curso e a sua perdurabilidade. Ou sobre os problemas da comunicação social em idos de mudança de todo o tipo.

Como gostaria de o ouvir  horas a fio  sobre a sua visão da sua vida, naquele jeito de quem ainda por cá anda, mas há muito que anda por fora ou acima do que cá se passa.

Enfim!

Vamos ter de nos ir falando, agora, mais de longe, mas, porventura, com maior frequência.

Para já, retenha que, como seu aluno em tantos instantes da saga comum, aprendi bastante, mas não tudo o que devia.

Que, como seu amigo e admirador, aí aprendi quase tudo  e lhe agradeço o Comércio do Funchal, o Expresso e o PÚBLICO em especial, e mais as inumeráveis coisas em que quis esbanjar a sua frenética existência. Esbanjar, não. Parecer que esbanjava, deixando, contudo, um traço útil no caminho dos outros.

Que, como quem conheceu bem o que era e como era, guardo a impressão que se guarda sempre dos que mudam a nossa vida. Umas vezes, concordando consigo. Outras, não. Sempre, porém, situando-o no elenco dos raros por aquilo que são e por aquilo que fazem.

Finalmente, que, como Presidente da República, lhe transmito, de forma mais institucional, a gratidão pelo que lutou para que houvesse democracia em Portugal. Mesmo quando se exasperou com ideias, costumes, gerações ou partes delas, que não conseguia compreender e aceitar.

Dentro de uns tempos nos encontraremos, cara a cara. E verá que o seu Purgatório, se houver, será mais breve do que o meu.

Até lá, não mude!

Quero reencontrá-lo como era e é. Foi assim que gostei de o conhecer e privar consigo!

Abraço sem tempo,

Marcelo Rebelo de Sousa