Entrega de comida na Amadora foi suspensa. É hora de analisar o que correu mal

A iniciativa foi, para aquelas centenas de pessoas, um verdadeiro resgate. Ao altruísmo da mesquita “só” faltou maior capacidade de organização, pensando na saúde pública. Se assim fosse, teria sido um resgate perfeito.

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Nuno Ferreira Santos

Nesta quarta-feira, uma iniciativa da mesquita da Amadora, com um objectivo nobre de distribuição de alimentos, correu mal face ao planeamento, tal foi o ajuntamento de pessoas em determinado momento da tarde. O objectivo, diz o imã da mesquita, era ajudar pessoas desfavorecidas que “vivem em condições horríveis” e cujas dificuldades se agravaram em contexto de covid-19.

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Nesta quarta-feira, uma iniciativa da mesquita da Amadora, com um objectivo nobre de distribuição de alimentos, correu mal face ao planeamento, tal foi o ajuntamento de pessoas em determinado momento da tarde. O objectivo, diz o imã da mesquita, era ajudar pessoas desfavorecidas que “vivem em condições horríveis” e cujas dificuldades se agravaram em contexto de covid-19.

“Para já, não vamos repetir [a iniciativa]. Temos, primeiro, de fazer uma análise do que correu mal desta vez. Mas, sim, poderemos repeti-la mais tarde”, explica Abdul Gafar, imã da Mesquita de Massjid Sayyiduna Ussman. E o que correu mal foi, sobretudo, a ideia de tentarem, sozinhos, fazer o resgate social a tantas pessoas, sem a ajuda das forças policiais e municipais.

Alimentos não faltaram  e chegaram para toda a gente –, mas faltou a organização que tão útil seria na garantia do distanciamento social.

“Poderíamos ter começado a entrega mais cedo, para não haver aquele aglomerado. E, numa próxima vez, vamos fazer com que a polícia chegue mais cedo também”, reconhece Abdul Gafar.

Polícia estava informada

Apesar de não ter estado presente durante todo o período de entrega dos cabazes, a polícia estava informada desta iniciativa. É o que garante a mesquita da Amadora, que deixa, porém, rasgados elogios à actuação da polícia.

“Já tínhamos falado com a PSP da Amadora uns dias antes (…) Entretanto, ontem [dia da distribuição], estávamos à espera das horas a que a polícia viria. Da parte de manhã, o pessoal voluntário foi à mesquita para organizar os cabazes, para facilitar a entrega. As pessoas foram notando a nossa presença ali e foram-se aproximando. Quando vimos a enchente, ligámos à polícia, para vir rapidamente. Demoraram cinco minutos e trabalharam de forma espectacular, com muitos agentes”.

Nesta quarta-feira, o trabalho da polícia foi, sobretudo, organizacional e humano – tal como pede o Governo. Com conselhos, sem uso de força, com compreensão e sem músculo. Da parte da mesquita, há o reconhecimento de uma actuação humana por parte dos agentes.

“Contou a parte humana. Viram pessoas com muitas dificuldades”, elogia. E detalha que uma boa parte daquelas pessoas vive em condições brutais – também por isso tantas taparam a cara, quando confrontadas com as câmaras televisivas.

“Há umas semanas, fizemos entrega de alimentos em casa de algumas pessoas. Vimos habitações imundas, sem luz, com mau saneamento e com pessoas a mais a viverem lá dentro. Condições horríveis”, descreve-nos Abdul Gafar, apontando que a entrega de alimentos não foi apenas para pessoas muçulmanas, mas para qualquer cidadão – 20 a 25% das pessoas ajudadas não são islamitas.

O imã declarou-se surpreendido com o número de pessoas que surgiram na mesquita, muitas delas em pleno período do Ramadão – com tudo o que isso acarreta nesta fase, até fisicamente, para o povo muçulmano.

“Claro, não é fácil. Estando em jejum, pelo Ramadão, é difícil estar ali várias e várias horas, neste caso à espera de um cabaz. Foi muita gente. Da comunidade muçulmana que esteve a recolher alimentos, algumas são pessoas que perderam os trabalhos – em alguns casos, marido e mulher estão sem emprego – e não têm conseguido colocar comida na mesa para os filhos”.

Mensagens de não-muçulmanos a quererem ajudar

Sendo certo que existiram problemas de organização e riscos para a saúde, em tempos de pandemia, o mediatismo desta iniciativa na comunicação social está já a desencadear um movimento social. E o que foi feito nesta quarta-feira parece ser apenas uma parte do que é possível fazer. “Recebemos muitas mensagens, também de pessoas não-muçulmanas, a dizerem que estão dispostas a contribuir”.

Trata-se de uma contribuição monetária, com dinheiro e bens, mas também física, com oferta de ajuda na distribuição dos cabazes e na logística da iniciativa. Esta ajuda, prevista para as próximas iniciativas deste tipo, deverá, portanto, superar a já larga cobertura desta primeira distribuição.

“No mês do Ramadão, por as pessoas estarem de jejum, há o hábito de contribuírem com valores monetários e alguma comida. E os donativos foram chegando mesmo antes do início do Ramadão, tendo sido feita uma primeira entrega ao domicílio”.

Como os donativos foram aumentando, à primeira remessa – feita ao domicílio – seguiu-se uma segunda, já de vários milhares de euros. E foi este o quadro que permitiu a Abdul Gafar e mais um grupo de jovens levarem para a frente a entrega dos bens.

“Não estamos a falar de coisas por aí além... São apenas coisas essenciais. Tínhamos um kit mais ou menos definido, que tinha leite, arroz, atum, feijão, esparguete e óleo...”

O que não é “por aí além” para o cidadão comum foi, para aquelas centenas de pessoas, um verdadeiro resgate. Ao altruísmo da mesquita “só” faltou maior capacidade de organização, pensando na saúde pública. Se assim fosse, teria sido um resgate perfeito.