“Todos os trabalhadores têm direito a ser felizes”

Foram despedidos, entraram em layoff, perderam rendimentos. Trabalham receosos e temem o futuro. Em que pensam os trabalhadores neste 1º de Maio, quando uma pandemia virou o mundo do avesso? Liberdade, esperança, resiliência, fé, medo – e o “vazio” que o desemprego traz

Foto

Não há artigo nem alínea da Constituição da República Portuguesa que o defina. Mas se Graça Coelho mandasse, a declaração teria força de lei: “Todos os trabalhadores têm direito a ser felizes.” Sentada no sofá de casa, em Coimbra, põe a manta nas pernas para acalentar o corpo, como se afastasse também o frio interior destes dias, e não oculta a emoção quando o assunto são direitos e deveres. Liberdade e falta dela. Para Graça Coelho, 62 anos, “o direito a ser feliz é o mais precioso de todos”, porque nele desembarcam todos os outros. E num mundo abalado por uma pandemia - onde milhares ficaram sem emprego, entraram em layoff, perderam rendimentos ou trabalham lado a lado com o medo -, repeti-lo é resistir. Neste 1.º de Maio, Dia do Trabalhador, ela quer falar de liberdade. E do quanto valeu essa conquista.

Perante o papel branco onde se pedia que grafasse uma palavra ou frase sobre o momento actual, cedeu à comoção. “Tremi a escrever”, conta, para justificar a ausência do “não” no início da sua frase, falha emendada logo de seguida. “Não nasci num país livre. Quero que a minha geração continue livre e com direitos e que a juventude tenha a mesma liberdade”, caligrafou, deixando para segundo plano a suspensão do seu contrato de trabalho, comunicada por telefone numa sexta-feira, dia 27 de Março.

Foto
Graça Coelho, cozinheira-chefe

Graça Coelho, cozinheira-chefe numa escola, tinha 14 anos quando o país ganhou liberdade e ela descobriu a possibilidade de tudo ser diferente. A “família pobre” que sempre a orgulhou vivia de esmola: “Cheguei a acompanhar os meus pais a pedir”. À mesa havia sopa e escasseava tudo o resto, nos pés faltava o calçado, para a escola nem sempre havia bata. “Sem ela nem me deixavam entrar…” O 25 de Abril de 1974, este ano celebrado à janela a cantar a Grândola, ofereceu ao irmão mais novo a hipótese de seguir os estudos. Deu ao pai direito a uma reforma. A mãe morreu nesse ano, mas não sem antes os pequenos serem “feitos gente”. A vida ganhou horizontes.

E são eles que lhe faltam por estes dias. “Estou em casa confinada e dei por mim sem ser livre por causa desta pandemia. Tenho medo”, diz, assumindo um desejo de ver algo bom brotar do caos: “Talvez agora as pessoas dêem mais valor à liberdade.”

Foto
Rafael Bittencourt, manobrador de máquinas

Rafael Bittencourt tem sentido a falta dela. E do “trabalho que enobrece a alma”, como a avó, a viver no Brasil, lhe disse um dia. O trabalhador da Renault, em Cacia, tinha um contrato a termo até 15 de Abril e a promessa de uma passagem aos quadros, mais de um ano e meio depois de entrar na empresa. Mas a fábrica entrou em layoff a 19 de Março, o contrato caducou e ele engrossou os números do desemprego. A dois dias do 1.º de Maio, iniciava uma formação de alemão promovida pelo IEFP.

Aos 36 anos e a viver em Aveiro há três, quando a mulher se mudou para a cidade da ria para fazer um doutoramento, Rafael Bittencourt, com nacionalidade portuguesa e brasileira, entende não ser o momento da “cobrança”. Mas não deixa de sublinhar prioridades: “Precisamos de ter mais segurança no trabalho.  De saber que amanhã não estaremos na fila do desemprego.” Para ele, é “um absurdo” ver colegas de trabalho sem um emprego estável aos 50 anos. Um dia demasiado muito novos para ter garantias, noutro demasiado velhos para as conquistar. “Este é um sector instável, mas têm de dar direitos.”

Fotogaleria

A ausência de um contrato é familiar a Jaciele de Jesus. Chegou a Portugal há menos de um ano e assumiu o cognome de freelancer. Passou por lojas, ajudou na organização de eventos, fez limpezas. “Só uma vez tive um contrato e foi de dias.” Jaciele ficou sem emprego quando a covid-19 chegou a Portugal, como o marido, Paulo César de Jesus, dispensado da fábrica onde laborava. Por estes dias, com os filhos Sofia e Asafe, de seis e 12 anos, sobrevivem com a ajuda da Associação de Jovens Ecos Urbanos. Por indicação da autarquia, levam-lhes alimentos e, se necessário, assumem até as contas de água e da luz.

Jaciele de Jesus subscreve o princípio dos “direitos e deveres”, mas em 37 anos de vida nunca pôs os pés numa manifestação. “Nunca tive esse interesse”, admite. Em Espírito Santo, no Sudeste do Brasil, trabalhava num infantário. “Amava fazer aquilo.” Mas a vinda para Portugal, diz, era prioritária: evangélicos, dizem-se missionários e ter feito a viagem com a “missão de Deus”. E é à fé que entregam o destino: “Ele sempre envia socorro, como enviou os anjos do Ecos [Urbanos].” O trabalho é meio de “sustento”, mas também de “dignidade”. “Mesmo a fazer limpeza dou sempre o meu melhor. Passo para o outro o que queria que fizessem comigo.” O Dia do Trabalhador, esse, será como outro qualquer.

Foto
Paulo César de Jesus, trabalhador da indústria, e Jaciele de Jesus, professora e trabalhadora freelancer

Como acontecerá, de resto, em casa de Sílvia Mourão. O 1.º de Maio é “um dia igual aos outros”, arroga, tal como já foi o 25 de Abril. “Não tenho nenhuma explicação. Acabo por trabalhar na mesma e não faço grande distinção deste dia.” Quando terminou o curso em serviço social chocou de frente com um mercado de trabalho fechado e, ao fim de seis meses de uma busca inglória, procurou uma alternativa. “Arranjei outra forma de fazer o que gosto.” Pouco a pouco, montou um “negócio” de manicure ao domicílio na Maia. Por dia, antes da pandemia, conseguia visitar seis ou sete clientes. Sílvia gosta do que faz e, olhando pelo retrovisor, não se arrepende de ter deixado o serviço social na gaveta. “Já não me vejo a fazer isso.”

Como trabalhadora independente, não demorou a perder rendimentos. Na segunda semana de Março, já a covid-19 amedrontava o país, as clientes deixaram de a receber em casa e ela própria ganhou receio de o fazer. Ficou sem trabalho e apenas com o apoio da Segurança Social: 247 euros mensais. O companheiro, trabalhador numa agência de música, entrou em layoff. O “pé-de-meia” vai dando para sobreviver, mas o anseio de regresso à normalidade cresce à medida que as poupanças diminuem. No papel branco do PÚBLICO, inscreveu o sentimento que mais a corrói: impotência. “Não há nada que possa fazer para mudar isto.”

Foto
Sílvia Mourão, Manicure

Desemprego vai crescer

O abalo do SAR-CoV-2 chegou à economia – e instalou-se na casa dos portugueses. Num país a meio gás, as inscrições nos centros de emprego dispararam, embora os números oficiais do INE apontem para uma redução da taxa de desemprego – algo explicado com questões metodológicas: quem antes estava classificado como desempregado terá passado a inactivo (e não a empregado). O Fundo Monetário Internacional, aliás, já avisou da aproximação a um futuro nubeloso: a taxa de desemprego em Portugal poderá subir, durante 2020, até aos 13,9%. Serão mais 380 mil pessoas sem emprego em Portugal.

As notícias das dificuldades quotidianas atrás das fachadas e dos atropelos a direitos de trabalhadores são diárias. Enquanto patrões propõem a criação de um fundo estatal que as salve, os trabalhadores procuram recorrer aos mecanismos já criados para fazer frente à crise – e muitos pedem para serem eles a prioridade. “Para as grandes empresas o lucro nunca é suficiente para que haja reconhecimento e aumento de salários”, escreveu Bruno Correia, manobrador de máquinas. “Contudo, em situações como esta, à primeira adversidade, e à qual somos alheios, ironicamente os trabalhadores são de imediato ‘lembrados’ para contribuir com o seu sacrifício”.

Por estes dias, para lá das fachadas das casas onde muitos vivem confinados, escondem-se batalhões de sentimentos. Ao lado dos 42 retratos feitos pelo PÚBLICO, as palavras escritas formam uma espécie de emocionário em tempos de pandemia. Tristeza, revolta, impotência, abandono, insegurança, cansaço, falta de liberdade. Há quem, no meio da desordem, se tenha descoberto um “privilegiado” por manter o emprego e quem tema trabalhar com uma ameaça invisível à solta. Engracia Ferreira sente-se “um peixe fora de água”, João Paulo Dias fala de quem já passa fome, Jaime Renteria desenha uma mão e um “v” de vitória, Carla Sequeira recorda que a quarentena não é válida para os direitos, Rui Fernando da Cunha anseia a normalidade: “Quero o meu Portugal de volta.”

Fotogaleria

Nesse país resgatado, Graça Coelho espera regressar à sua escola para voltar a “respirar” da mesma forma. Estar em casa encolheu-lhe os rendimentos e a alegria. “É tirarem-me um pedaço de mim”, diz a cozinheira-chefe, delegada sindical e funcionária numa empresa que abastece as cantinas escolares. Se não se tivesse concessionado este serviço, aponta decidida, talvez muitas das suas colegas não tivessem sido dispensadas por estes dias. “A alimentação não é para dar lucro a ninguém.”

Graça Coelho olha para os 46 anos do Portugal “inteiro e limpo” e agradece. “Este país deu a possibilidade a uma menina que nada tinha de dar estudos aos filhos.” Neles, viu materializado o seu “sonho” de criança: os dois tornaram-se enfermeiros e estão agora na linha da frente no combate à covid-19.

Rafael Bittencourt tem saudades do trabalho. Não só pela conta no banco, mas por tudo o resto. “Sem o trabalho fica um vazio. Sinto-me um parasita. Com trabalho sentimo-nos úteis, sentimos que importamos.” Rafael sonhou ser desportista, estudou música. Mas acabou por se formar em Economia, pensando no “abismo social” existente no Brasil e em como essa narrativa poderia reescrever-se. “Queria ser alguém que mexesse nos números e mudasse algo. Ajudar a criar um sistema mais justo.”