Esclarecimento quanto à gata infectada por covid-19 na Bélgica ou um alerta ao bom senso

Este pseudo-diagnóstico não tem qualquer fundamento, na medida em que não foi confirmado, nem foram realizadas outras análises nem contraprovas que permitisse excluir outras causas.

Foto
Adriano Miranda

Na semana passada, os meios de comunicação social divulgaram, e com título aparatoso e pouco sério na minha opinião profissional, que uma gata tinha sido infectada por SARS-CoV-2 e desenvolvido sinais clínicos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Na semana passada, os meios de comunicação social divulgaram, e com título aparatoso e pouco sério na minha opinião profissional, que uma gata tinha sido infectada por SARS-CoV-2 e desenvolvido sinais clínicos.

O que ficou por explicar à população, da qual, infelizmente, boa percentagem vê nisso motivo para abandonar os animais (já não bastasse não terem a desculpa das férias este ano), foi os moldes em que a gata foi diagnosticada. Que foram nenhuns. Tal como ficou por partilhar o relatório elaborado pelo comité científico belga que, mais uma vez, reforça que a identificação de SARS-CoV-2 nos dejectos da gata não implica que esta esteja doente com covid-19.

De acordo com a Universidade de Liège, que recebeu a gata, esta desenvolveu sintomas uma semana após a tutora ter sido diagnosticada com covid-19 e que, face a possível contágio da gata, esteve atenta aos sintomas. Estes incluíram anorexia (perda de apetite), vómito, diarreia, tosse e taquipneia (respiração acelerada e superficial). Tendo em conta estes dados, a gata foi colocada em isolamento na universidade, não tendo sido alvo de exame físico ou quaisquer testes adicionais, em conformidade com as actuais leis de distanciamento social.

O diagnóstico foi obtido através de amostras de fezes e vómito colhidas pela tutora em casa. Nestas amostras, foram (mais uma vez à semelhança dos cães de Hong Kong) encontrados fragmentos do vírus. Isto não demonstra que o vírus estava vivo e activo no organismo da gata e muito menos permite deduzir que os sintomas sejam atribuídos a esta infecção em particular. Até que provem o contrário, e não me parece descabido não lavar as mãos antes de colher uma amostra fecal, as amostras podem até ter sido contaminadas pela tutora. Actualmente, estão a decorrer análises adicionais para tentar perceber se o ADN desta mesma tutora poderá estar presente nas amostras e provar contaminação. A par, quando oportuno e (se) disponível, serão realizados testes de anticorpos.

Como médica veterinária, especialmente dedicada a medicina felina, se vos escrevesse aqui a quantidade de diagnósticos diferenciais para esta lista de queixas, o leitor deixaria com toda a certeza de ler o artigo na primeira linha do texto. No entanto, presumo que não seja difícil de perceber que este pseudo-diagnóstico não tem qualquer fundamento, na medida em que não foi confirmado, nem foram realizadas outras análises nem contraprovas (e vou aqui repetir exame físico) que permitisse excluir outras causas.

Posto isto, o comité científico belga não aconselha que animais de pessoas infectadas com covid-19 sejam colocados em quarentena, mesmo que o humano seja hospitalizado, sugerindo que um membro da família ou amigo se responsabilize pelo mesmo durante esse período, preferencialmente sem o deslocar. Considera ainda não haver indicações especiais para pessoas saudáveis com animais, para além do bom hábito de lavar as mãos. No caso dos cães, é sim recomendável diminuir as caminhadas e manter a distância dos outros cães e detentores, o que para quem está habituado a passeios, sobretudo de cães pouco socializados, poderá ser por si só um desafio.

Gostaria apenas de acrescentar que em todo o mundo foram identificados até à data três animais portadores de fragmentos virais. Este número ridiculamente pequeno é a excepção e não a regra, uma vez que um dos principais laboratórios veterinários (IDDEX) testou até agora centenas de cães e gatos e não obteve até agora um único caso positivo. Ambos os cães permaneceram assintomáticos. A gata belga seria a primeira a desenvolver sintomas, ainda que esteja a recuperar bem (juntamente com a dona).

Neste momento, o risco de transmissão entre humanos e animais domésticos é considerado negligenciável, mas este será sempre um foco da comunidade médico-veterinária, que não descuidará a correcta identificação de casos e alteração de directrizes caso seja necessário.

Resta-me deixar-vos a tradução das declarações de quem perceberá muito mais do assunto do que eu (Hans Nauwynck, professor de Medicina Veterinária na Universidade de Ghent, especialista em Virologia), que não ecoaram por terras lusas: “Eu acho que devíamos ser muito cuidadosos aqui. Poderá ter havido contaminação das amostras. Antes de partilhar estas notícias ao mundo, eu teria feito testes adicionais. Se ouvirem isto agora, eu não quereria ser gato! Não tenho críticas a fazer aos meus colegas de Liège. O diagnóstico foi feito, não tenho dúvidas do resultado, mas é um teste PCR (Polymerase Chain Reaction), um meio de diagnóstico de material genético. Só me pergunto como interpretar tudo isto? O teste é positivo para coronavírus, completamente de acordo, mas como é que o teste foi feito? Como é que a amostra foi colhida? O resultado é fiável? Posso estar a exagerar, mas se calhar o material genético da dona acabou na amostra e esta foi contaminada. Para ter a certeza absoluta, deveriam ter sido feitos testes adicionais e a divulgação dos presentes resultados deixada para mais tarde. Lamento imenso que não se tenha investigado mais. Sinto que com estas notícias as pessoas fiquem assustadas e que os animais acabem vítimas disto, e isto não está certo. Um cientista devia poder providenciar informações claras e completas e acho que isto não aconteceu, tendo a primeira melhor história sido enviada ao mundo.”

Partilho da mesma opinião e lamento, na mesma medida, que notícias falaciosas possam contribuir para criar mais (e inocentes!) vítimas. Convido a quem perceber francês e não saiba o que fazer com o tempo de quarentena a ler o documento oficial belga, que reforça ainda não ser assim tão surpreendente encontrar fragmentos virais no vómito e fezes de gatos, tendo em conta os seus característicos hábitos de higiene pessoal. Agora, façam-nos a todos um favor e continuem a ser pessoas cívicas e responsáveis e fiquem com os cães, os gatos e as tartarugas em casa. E sejam também críticos no que lerem. Afinal, temos todos tempo!