Rosa Aurora: os cabelos de linho da artesã de Argela

A sua avó era uma grande tecedeira. E Rosa semeia todos os anos um bocadinho “para não deixar acabar a semente”. Tem linho nas mãos – e no sangue. E tem em casa um museu.

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Triste linho. O que ele padeceu para chegar a ser branco e útil. Foi semeado, arrancado, ripado, moído, espadelado, sedado, fiado, ensarilhado, meado, cozido, corado, dobado, novelado, urdido e tecido.

No listel branco, escrito em maiúsculas, o nome da freguesia. Do escudo azul sobressaem três elementos: dois losangos dourados que representam a tradição mineira da região, um pé de linho florido e dois cursos de água, o Ribeiro do Real e o Rio Coura. Bem que podia, mas o brasão de Argela, no coração do concelho de Caminha, não narra a história de Rosa Aurora, nascida nas minas em 1944 e que um dia decidiu pedir linhaça emprestada para semear e dedicar a sua vida ao linho e aos teares. “As voltas que o linho dá”, suspira hoje, com um autêntico museu — literalmente — nas mãos.

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O trato é simples. A dona Rosa promete contar as histórias de que se lembra. Nós ouvimo-las. “Já não me lembro de todas”, desculpa-se à Fugas enquanto atravessamos o pequeno pátio soalheiro, evitando pisar as laranjas que caem para dentro e para fora da propriedade. Há uma foice pendurada e duas espigas de milho-rei presas num abrigo de tijolo que faz as vezes de um espigueiro (com centenas de espigas de milho amarelo organizadas como Lego). Na porta ao lado, Rosa — que até podia ser a Pomar, se nos metêssemos numa máquina do tempo e avançássemos umas décadas — conserva a sua história, que se funde com a dos teares de madeira que resgatou, com as lançadeiras e as canelas, com os fios e as tramas, com as toalhas finas com “puxadinhos”, os aventais de trabalho simples e escuros e as saias de lavradeira garridas, com a roca e o fuso e com um novelo de verbos que parecem pertencer-lhe – corar, espadelar, ripar, desensarilhar, encanelar, dobar, urdir e tecer –, palavras que só soam naturais ditas por ela ao vagar dos seus gestos.

O seu espaço de trabalho já foi uma escola (deu formação a raparigas entre 1995 e 2005) e hoje é um museu. Nem mais, nem menos — de certeza mais do que menos. Com sacos e sacos de linho em bruto, com seis teares montados e prontos a usar e os apetrechos necessários a todas as fases do tratamento do linho que aqui e ali Rosa foi recolhendo e salvando, evitando que fossem parar a uma fogueira ou que fossem comidos pelo bicho da madeira nos sótãos das aldeias da freguesia, cada vez menos povoada. “Já trabalharam todos”, recorda. “Agora, apenas um de cada vez”, lamenta Rosa, que nos trabalhos do dia-a-dia continua a dar preferência a um tear “com oitenta e tal anos”. “Todas as casas tinham. Agora, conta-se pelos dedos das mãos quem tem tear.”

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Argela. Santa Marinha de Argela. “Nasci nas Minas do Real, número um.” O seu falecido pai, natural de São Lourenço da Montaria, era o encarregado-geral. E o seu padrinho “tinha uma grande fábrica” onde se fundia o estanho e se vendia “em lingotes” para o estrangeiro para peças de carros. “Eu ia à escola, que era aqui a três quilómetros, e quando acabava a escola aprendia costura e tecelagem. A mãe era tecedeira, a filha era modista. Tinha um tear e ajudava-nos a montar o nosso”, conta dona Rosa, cuja mãe, transmontana de Ifanes, “nunca teceu”. “Mas era filha de uma grande tecedeira e sabia todos os processos. Somos três irmãs, mas só eu e a do meio é que tecemos. A mais velha não.”

Rosa casou-se com José Joaquim e juntos compraram um terreno, onde construíram a casa. Quando a lavoura deixou de ser rentável, a mulher da casa lembrou-se do tear “arrumado” no sótão. “Disse ‘vou mas é trazer o tear cá para baixo, vou semear uma leira de linho e vou-me dedicar ao artesanato'”. “Isto foi em 1996/97. Não... foi em 1986/87! Os filhos já eram grandes.”

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Há muito que na região “não havia sementes de linhaça”, que acabou por conseguir no banco de sementes da Direcção Regional de Agricultura de Entre Douro e Minho. “A gente traz a semente e tem que devolver. É emprestada. Quando aqui semeei o primeiro linho, ninguém conhecia. Veio quase toda a freguesia ver.” Parecia a flor que brota no azul do brasão da freguesia. “E cresceu muito. Era um linho muito alto num campo grande. Estava habituada a um linho mais curto. ‘Decerto não é linho, Zé. Esperemos a ver o que dá'”. Dá até hoje – Rosa ainda semeia “todos os anos um bocadinho para não deixar acabar a semente”. Em sacos, pelo chão entre as pernas elegantes dos teares, ainda tem “muito linho antigo”.

O ciclo do linho “é de três meses”, explica. “Por exemplo, semeia-se em Março e em Junho pode-se arrancar. Se semear em Abril, em Julho está pronto. No Inverno também se dá, mas fica mais engelhado.” O linho é arrancado, ripado para tirar as sementes e depois vai para a água em molhos (onde fica de seis a nove dias). Posteriormente é lavado e sacudido antes de se pôr a secar ao sol “espalhadinho”. Apanha-se e depois é batido e transformado com a ajuda de uma espadeladora. “O meu filho mais novo é serralheiro e fez-me uma com um motor a gasóleo desses carritos pequenos dos reformados que não precisam de carta”, sorri.

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O carpinteiro que fez o seu tear mais antigo era de Pedrulhos ("já faleceu"). “Requer um bocado de arte. Hoje há quem os faça, mas são uns tabuões a direito, não têm os contornos que estes têm.” Alinhado está um segundo tear, mandado fazer por Rosa para dar formação. “Foi o Pocinha, de Gondar”, assinala. “Fez um tear e uma urdideira. Eu tinha uma, mas era de parede. Tinha que andar muito e adiantava-se pouco.” Nesse ano ensinou quatro pessoas. Depois propuseram-lhe 15, demasiadas alunas (nunca ensinou homens) para tão poucos teares. “Soubemos que em Ponte de Lima havia teares antigos que estavam arrumados sem jeito nenhum. O meu marido foi lá e comprou três. Limpou-os e envernizou-os, que é a arte dele. E daí comecei. Para onde fui levei teares.” Algarve, Lisboa, ilhas e mais Inglaterra, Holanda e várias vezes a Espanha graças ao projecto número 14 aprovado pela Adriminho - Associação de Desenvolvimento Rural Integrado do Vale do Minho. “Pode-se desmontar tudo em pedaços ou pegar nele e transportar inteiro.”

Rosa considera-se “conhecedora de todas as peças”. Foi perguntando “a pessoas antigas” que ainda lhe arranjaram um ripo, usado para tirar as sementes ("vê as praganas a sair?”), e um sedeiro, uma peça “um bocado delicada” que serve para separar as fibras do linho, para tirar “as enrodilhadas” e “pôr o linho lisinho”. “São ferrinhos de aço, pregos especiais feitos por ferreiros. Vai-se penteando assim. É uma espécie de um pente. Este linho é muito comprido. Tem que ser lentamente. O linho é o que fica na mão lisinho e fibrudo e a estopa sai enrodilhada como quando a gente se penteia”, exemplifica a artesã, que às vezes também se serve de uma escova do cabelo — o seu, por sinal, é em tons de linho. Dedos e fios entrelaçam-se depois entre a roca e o fuso num vai-e-vem sedutor. A fiandeira dispersa a sua atenção por várias operações simultâneas, de movimentos cruzados e de ritmos diferentes, como quem toca um instrumento complexo: estira as fibras da estriga com a mão esquerda, torce as fibras com o fuso e bobina o fio com a mão direita. “Faz parte da vida. As mãos deixam-me cair o fuso às vezes.”

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