“Não nos empurrem para a rua. Porque a gente luta quando tem que lutar”

A criação de um ministério da administração pública aumentou a expectativa dos trabalhadores de terem um interlocutor, em vez de serem uma folha de Excel nas Finanças, diz o secretário-geral da Fesap, José Abraão. A Fesap quer aumentar salários – todos, entre 3 a 4% -, rever carreiras, vínculos e sistema de avaliação. Pode ser com acordos anuais ou plurianuais.

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O secretário-geral da Fesap (afecta à UGT) diz que o foco da relação com a nova ministra é na negociação – mas é preciso que haja decisões e depressa. O primeiro teste é o orçamento e, se o Governo falhar, já há iniciativas “alinhadas” para a luta na rua. Olhando para o lado, o sindicalista prevê que o caminho da CGTP seja uma linha mais dura e ortodoxa.

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O secretário-geral da Fesap (afecta à UGT) diz que o foco da relação com a nova ministra é na negociação – mas é preciso que haja decisões e depressa. O primeiro teste é o orçamento e, se o Governo falhar, já há iniciativas “alinhadas” para a luta na rua. Olhando para o lado, o sindicalista prevê que o caminho da CGTP seja uma linha mais dura e ortodoxa.

É dirigente do PS e na última reunião da comissão política do partido pediu a António Costa um ministério para os funcionários públicos. Vai mesmo existir: ficou satisfeito com a solução?
Na Fesap, como na UGT, sempre considerámos que a administração pública com todas as suas vertentes não deveria depender de uma pasta económica. Desde 2009 não há aumentos salariais, a negociação foi muito ténue, houve programa de ajustamento financeiro... Mais se justificava ainda [um ministério]. Há pequenas medidas fundamentais para o funcionamento dos serviços públicos e para que os trabalhadores ganhem motivação que podem ser tomadas sem que estejamos exclusivamente a negociar com a folha de Excel ao lado.

Mário Centeno liga muito à folha de Excel?
O dr. Mário Centeno sempre teve uma preocupação de contas públicas certas - e nós concordamos - mas também grandes constrangimentos no que diz respeito à despesa com pessoal. Nesta última legislatura era fundamental que se pudesse ir um pouco mais além. O Governo limitou-se a dizer que ia repor rendimentos e direitos, mas, para nós, foi manifestamente insuficiente. Queremos acreditar que, com esta formulação de um ministério próprio para tratar as questões da Administração Pública (AP) 17 anos depois, pode ser que se faça um outro caminho em torno de questões essenciais.

Deposita muitas expectativas nesta ministra? É conhecida por ter sido especialmente dura nas negociações com os professores...
Nós temos expectativas relativamente a esta nova equipa no seu conjunto, tem gente que conhece bem a administração pública. As negociações são sempre duras.

Mas prevê inflexibilidade?
Não, se houver uma predisposição, como creio que vai acontecer, por parte deste ministério para valorizar a negociação colectiva como forma de podermos chegar a compromissos, sejam de natureza anual ou plurianual em torno dos vínculos, das carreiras, das remunerações, da avaliação de desempenho, da formação profissional.

Um acordo para progressões e salários para a legislatura, plurianual, seria mais confortável?
Não somos daqueles que querem tudo de uma vez, como muitas vezes se quis fazer passar. Os serviços públicos precisam de previsibilidade, estabilidade, confiança - que é central e se pode obter num acordo anual em torno de um conjunto vasto de matérias, mas também num acordo plurianual para a legislatura à semelhança de Espanha. Pode ser um contributo decisivo para tornar o emprego público mais apetecível e recrutar os mais qualificados e os melhores.

Os funcionários públicos são na verdade a cara do Estado.
Digamos que somos aqueles que apanham sempre a primeira pancada. E temos apanhado muito mais a partir do momento em que na troika se procurou diabolizar a AP dizendo que somos gente com muitos privilégios. Tentou-se virar trabalhadores contra trabalhadores, públicos contra privados. Não queremos ter mais do que os outros; queremos, sim, que haja negociação colectiva e cujos resultados seja possível negociar, como acontece com o salário mínimo, que ficou fixado em 635 euros para os assistentes operacionais.

Sobre as carreiras da educação: vai ser uma das insistências da Fesap com a ministra, que foi a secretária de Estado dessa pasta?
Temos como princípio que nenhum tempo de serviço seja apagado da carreira de qualquer trabalhador. Não vamos desistir que o tempo seja integralmente contado. Há espaço para a negociação? Queremos acreditar que sim. A lei de há dez anos dos vínculos, carreiras e remunerações foi um modelo já pensado para limitar despesa, travar progressões. Dez anos depois estamos em condições de partir para uma forma diferente de encarar as carreiras e os vínculos.

E querem negociar até quando? Na primeira metade da legislatura?
Nós dissemos que não queremos tudo de uma vez. Queremos negociação anual geral nos termos do que está na lei do trabalho em funções públicas. E depois compromissos que podem ser plurianuais para a legislatura.

António Costa já disse que não voltará à contagem do tempo de serviço dos professores.
Essa é uma negociação que os professores terão que fazer com o Ministério da Educação. Na Fesap também temos sindicatos de professores. Pode haver uma solução faseada.

Que sinal quer já no orçamento de 2020?
No OE 2020 queremos claramente que se cumpra o que várias forças políticas, incluindo o PS, disseram: que haveria condições para aumentar salários para todos os trabalhadores.

Qual é a fasquia mínima de aumento?
Há partidos que defendem aumentos em linha com a inflação e isso é manifestamente insuficiente. A nossa proposta é somar a inflação, os ganhos de produtividade e a possibilidade de alguma recuperação do poder de compra. Na UGT aprovámos para a negociação colectiva uma banda salarial entre 3 e 4%. Depois é negociação - que não pode ser isolada das carreiras, do tempo de trabalho, da formação profissional, vínculos, ou da ADSE.

Há muito para discutir e negociar. Haja vontade de negociar e de apresentar resultados. Por isso eu digo: não nos empurrem para a rua. Porque a gente luta quando tem que lutar; quando há negociação e compromissos não somos irresponsáveis ao ponto de estarmos a negociar por um lado e por outro a lutar.

São contra o aumento dos preços na ADSE e a abertura ao resto dos portugueses?
Na Fesap não estamos disponíveis a pagar, em média, mais do que pagamos hoje seja no regime livre ou no convencionado, seja até nas nossas contribuições. E não nos parece razoável [abrir para todos]. Mas estamos disponíveis para discutir alargamentos.

E prevê uma boa abertura para o diálogo por parte do novo Governo?
Por parte do novo Governo, sim, porque se alterou toda esta situação que vivemos até agora. Há uma vitória clara do partido que governa, já sem a absoluta necessidade de haver arranjos no Parlamento que permitissem criar as condições para que as coisas pudessem acontecer.

Ficou satisfeito com o fim da “geringonça”... Já não precisa dos arranjos.
É preciso conversar com toda a gente, mas há uma coisa que para mim é fundamental: houve aqui uma deslocalização, retirando enfoque ao que deve ser a negociação colectiva, que muitas vezes se desviou para o Parlamento.

Não haver aumento de salários pode levar a Fesap à rua?
A nossa matriz (Fesap/UGT) é dar prioridade à negociação. A negociação falha, nós temos de lutar.

Está disposto a esperar até quando?
Vamos iniciar esta legislatura e perceberemos imediatamente que condições haverá para que estes compromissos se possam estabelecer, de carácter anual ou plurianual. Tratando-se de um Governo com condições para governar com estabilidade, o que nós exigimos também é estabilidade nos serviços públicos, na contratação, nos salários, nas carreiras.

Essa estabilidade pode durar quatro anos?
Quero acreditar que com seriedade na negociação, com responsabilidade e compromissos há-de haver condições para que a legislatura possa chegar ao fim. Se não houver negociação séria com alguns resultados e que nos mostre um caminho diferente daquele até aqui, não conseguimos que as pessoas se mostrem satisfeitas se se mantém tudo na mesma. É por isso que já há um conjunto de iniciativas que estão alinhadas para o protesto.

Será então uma Primavera de 2020 mais complicada do que a de 2019?
Essa é uma pergunta que se pode fazer ao Governo. No que diz respeito à administração pública, está nas mãos do Governo ver de que modo respeita o diálogo social e os parceiros sociais, se valoriza a negociação colectiva, também como forma de podermos garantir essa estabilidade na governação do país.

A mudança na liderança da CGTP pode endurecer o discurso nas negociações que aí vêm?
As mudanças na CGTP, à CGTP dirão respeito. Nós, sindicatos, temos todos de fazer um esforço diferente no sentido de valorizar a negociação colectiva; protestar quando é necessário protestar. Mas aquilo que é mais sensível hoje e que nos preocupa verdadeiramente - e a responsabilidade não é dos sindicatos, é também dos governos e das instituições -, são os movimentos inorgânicos que conduzem as coisas de tal forma que nos empurram para caminhos diferentes. Isto só se pode travar com a negociação colectiva. A CGTP há-de fazer o seu caminho.

É previsível que seja uma linha mais dura?
Mais dura, mais ortodoxa provavelmente. Na UGT e na Fesap temos uma matriz essencial que é, tanto quanto possível, a independência dos sindicatos relativamente a qualquer força partidária ou até a qualquer confissão religiosa.

Então se é assim, provavelmente a CGTP vai pôr mais depressa pessoas na rua do que a UGT?
As pessoas protestam muitas vezes porque têm razão.

Isso quer dizer que às vezes se protesta sem razão?
Muitas vezes, as forças políticas partidárias que não têm representação sindical põem-se por trás de movimentos e de situações para fazer valer um conjunto de posições...

Está a falar do Bloco de Esquerda e PCP?
Claro. Estou a falar de alguns partidos à esquerda que correm sempre atrás do prejuízo por falta de representação sindical, como é o caso provavelmente do PCP, mas que, de algum modo, acabam por empurrar situações que é o papel tradicional dos sindicatos. Por isso é que a CGTP, a UGT e os sindicatos têm de avaliar melhor aquilo que é a sua posição hoje e preparar as condições, que passam no essencial por preocupações não só com aqueles que trabalham, mas também com os desempregados, com o sector privado, com os prestadores de serviços, para que as pessoas se possam rever cada vez mais no trabalho que fazemos.

Há um grande esforço a fazer por parte de um Governo como este, que é um Governo de esquerda, do PS, no sentido de valorizar o papel dos sindicatos em democracia e na sociedade portuguesa para evitar aproveitamentos, muitas vezes indesejados, para fins que não têm nada a ver com os interesses dos trabalhadores.