Austrália, onde a memória e a realidade se encontraram

O leitor Pedro Brás Marques partilha a sua experiência no outro lado do mundo.

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Valerá a pena atravessar metade do planeta e ainda voar mais três horas para ir ver uma rocha gigante no meio do deserto? 

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Valerá a pena atravessar metade do planeta e ainda voar mais três horas para ir ver uma rocha gigante no meio do deserto? 

Em certas viagens, encontramos locais em que algo no nosso passado se une com a realidade há muito ansiada, resultando num momento de plenitude interior praticamente intraduzível por palavras. Por trás, há sempre uma memória, uma leitura, um filme, uma conversa à espera de se encontrar com a realidade.

Na minha há muito desejada viagem à Austrália, levei comigo dois desses potenciais momentos. Um, era este: Ayers Rock ou Uluru, na linguagem indígena. Porquê? Por causa do Canto Nómada/Songlines, de Bruce Chatwin, que li há mais de 25 anos. Trata-se de um livro onde, numa narrativa semificcionada, se fundem História, Antropologia, Geografia e alguma especulação, que é o que lhe dá o sabor único e inesquecível.

Chatwin era um verdadeiro viajante e contador de histórias, mas colocava-lhes um toque pessoal, um pouco como fazia José Hermano Saraiva… Nesse livro, o britânico narra a história das songlines, as canções aborígenes que também são verdadeiros mapas com indicações do território, incluindo os acidentes geográficos como rios e montes. Ou seja, para o aborígene, “cantar” não era só uma viagem física, como espiritual.

Fascinado, procurei outras fontes mais científicas que me levaram a Ayers Rock/Urulu, o estranho monólito (alô, Kubrick!) que se ergue no deserto australiano, sagrado para os locais. Trata-se daquilo que se pode designar por axis mundi, o local criador, como tão bem o definiram Mircea Eliade ou Joseph Campbell.

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Ali chegado, a realidade superou aquilo que esperava (e desejava) encontrar. É fácil perceber como o homem primitivo se sentiu pequeno e maravilhado perante esta forma bizarra que perturba a linha infinita do horizonte desértico, tal qual o medieval se sentia esmagado pela presença do sagrado numa catedral gótica. Na enorme rocha estão as provas físicas da passagem das divindades cujos actos servem, ainda hoje, de exemplo para a vida. O elemento físico a condicionar o espiritual. Maravilhoso!

E, mais do que ao crepúsculo, chegar ainda de noite e presenciar o nascer do sol, o astro-criador, neste ambiente já de si carregado de simbolismo, foi uma experiência pessoal, e até espiritual, única! Daí a minha necessidade de tocar naquela pedra, como fiz várias vezes. Se mais não fosse, a viagem já tinha valido a pena.

Mas houve mais. Desde miúdo que considero Jacques Cousteau um dos meus heróis. Não perdia os seus documentários e lia tudo o que conseguia agarrar sobre exploração submarina, talvez pela influência marítima familiar, talvez para compensar o meu receio inato perante o mar… O certo é que pedia aos meus pais livros sobre o mar e, numa das visitas à extinta livraria Fernando Machado, nos Clérigos, no Porto, o meu pai ofereceu-me o primeiro fascículo da colecção O Mundo Submarino, de Jacques Cousteau, editado pela Salvat.

Ora, um dos locais mais apreciados pelo Comandante, e que mais belas fotografias proporcionava, era a Grande Barreira de Coral, na costa australiana. Portanto, se Ayers Rock/Uluru era uma das duas grandes apostas desta viagem, a outra era esta. A visita foi ao nível de turista, nem podia ser de outra forma, mas já deu para ficar absolutamente maravilhado com a diversidade de cores e de fauna existente, tudo a serpentear por entre as diversas formas do coral. Já tinha mergulhado noutras paragens mas nada realmente se compara em beleza e grandeza à Grande Barreira.

É claro que ainda houve a visita a cidades como Sydney e Melbourne, sem esquecer a belíssima floresta tropical de Kuranda. Mas nada se compara à sensação interior de, finalmente, ser revigorado pelo vermelho do Uluru e pelo azul do mar de coral.  

Pedro Brás Marques