Bons Selvagens: quatro caminhantes em busca do estado puro

Quatro amigos andam a explorar Portugal de lanterna na mão e cabeça ao relento. Encontraram nas caminhadas em autonomia uma forma de libertar o corpo do ritmo da cidade com a ajuda de um famoso grito de guerra: “Aúuuuu!”

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Nuno Ferreira Santos

Nem sempre tomam banho, põem os transportes públicos à frente do carro, exploram Portugal a pé e de bicicleta, de preferência sem humanos à vista. Não é que sejam anti-sociais, mas, à luz do nome que escolheram para a quadrilha, o homem é naturalmente bom, a sociedade é que o corrompe, como dizia Rousseau. Diogo Tavares, José Josué, Marta Castro e Rui Henrique são os Bons Selvagens, gente da cidade (de Lisboa, do Porto e de Tomar) a viver na capital, que sonha dias seguidos com o momento alto da vida de um trabalhador na Terra: o fim-de-semana.

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Nem sempre tomam banho, põem os transportes públicos à frente do carro, exploram Portugal a pé e de bicicleta, de preferência sem humanos à vista. Não é que sejam anti-sociais, mas, à luz do nome que escolheram para a quadrilha, o homem é naturalmente bom, a sociedade é que o corrompe, como dizia Rousseau. Diogo Tavares, José Josué, Marta Castro e Rui Henrique são os Bons Selvagens, gente da cidade (de Lisboa, do Porto e de Tomar) a viver na capital, que sonha dias seguidos com o momento alto da vida de um trabalhador na Terra: o fim-de-semana.

É nesses períodos de dois a três dias que, desde 2016, pegam nas mochilas, sacos-cama, calçado de caminhada e casacos impermeáveis e se fazem à estrada rumo à serra da Estrela, ao Parque Nacional da Peneda-Gerês, à serra do Açor, aos vales do Nabão ou do Côa. “Tendencialmente no interior”, foca Josué, de 41 anos, professor de Artes Visuais. “Não é preciso ir lá fora para encontrar lugares extraordinários”, completa Diogo, também 41 anos, guia de trekking. O extraordinário, aqui, é ter tempo para olhar as estrelas, beber vinho em frente a uma fogueira, ouvir a chuva a cair na terra.

Os objectivos das saídas são vários: testar a capacidade de autonomia em percursos pela natureza; conhecerem-se a si mesmos; explorar o país; conviver; pensar nas pequenas e nas grandes coisas da vida; multiplicar o tempo. “Costumamos dizer que são dois dias que passam como duas horas mas parecem duas semanas”, conta Diogo. É que os tais fins-de-semana à Bons Selvagens passam rápido porque são bons, mas “parecem duas semanas” porque, ainda assim, “acontece muita coisa”. Pelo caminho, desenham, fotografam, escrevem, com o objectivo de mais tarde partilhar e inspirar quem os descobre e acompanha através das redes sociais ou na vida real.

“Um fiasco” para começar

Tudo começou nas bicicletas. Admiradores da mobilidade ecológica em contexto urbano, os quatro iam-se cruzando numa Lisboa onde ainda eram poucos os que pedalavam mas onde começavam a surgir movimentos como a Massa Crítica (uma concentração mensal de bicicletas na cidade, que começou há 27 anos em São Francisco, nos Estados Unidos, e chegou a Lisboa em 2003, com o intuito de chamar a atenção para a mobilidade ecológica e estilos de saudáveis), fanzines, blogues, lojas e outros espaços ligados à “ciclo-filosofia”. Era “uma comunidade”, lembra Diogo. E Marta, de 38 anos, animadora sociocultural, reconhece logo a seguir: “O que nos uniu foi a bicicleta, mas depois começámos a investir cada vez mais na caminhada.”

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Nuno Ferreira Santos

Rapidamente, os quatro amigos acharam que deveriam fazer “mais qualquer coisa juntos” e, no Outono de 2016, partiram para a serra da Estrela com o plano de “subir o vale de Manteigas e os picos mais icónicos, como o Cântaro Gordo, dormir e voltar a Manteigas pelo lado de cima da serra”, descreve Rui, de 42 anos, designer. Mas os planos nem sempre se concretizam. “Apanhámos uma grande chuvada a subir o vale e quando chegámos ao Covão d’Ametade estávamos tão ensopados que achámos melhor desistir.” Conclusão: a primeira grande jornada dos Bons Selvagens resumiu-se a uma manhã de caminhada com roupa e sacos-cama molhados. No final, foram dormir a uma pensão. “Nada como um fiasco para nos preparar bem”, analisa Diogo. Gargalhada geral.

Não se é, portanto, “bom selvagem” à primeira. O caminho para o “estado puro” custa a trilhar. “Tem de se ir várias vezes, pensar, repensar e adaptar”, explica Marta. E a premissa vale tanto para levar a cabo a autonomia exigida como para caminhar sem deixar rasto, num modelo ambientalmente responsável.

No início, Rui, Marta, Josué e Diogo levavam comidas rápidas como noodles e muitas embalagens de plástico nas mochilas. “Depois das refeições ficávamos com montes de lixo connosco e isso fazia-nos confusão. Então, começámos a preparar as coisas em casa, o que dá algum trabalho, mas também muito gozo”, conta Marta, e hoje esta é uma das principais componentes da viagem em modo ecológico, que continua no que vestem ou no combustível gasto para chegar ao ponto onde iniciam a caminhada (caso não se desloquem de bicicleta, a prioridade vai para os transportes públicos, sempre que possível). É como sublinha Rui: “O acto mais importante que temos no dia-a-dia é onde gastamos o nosso dinheiro, e o que é que isso implica. Quando me decido por um determinado alimento, tento ter consciência do percurso que fez para chegar até nós, mesmo que seja uma simples maçã.”

Tentando não ultrapassar o número de oito elementos (para não comprometer a meta do “rasto zero” nem a experiência da viagem), os Bons Selvagens têm levado outras pessoas a explorar o país de mochila às costas. A finalidade é inspirar para esta forma de viagem “limpa” nos tempos do turismo massificado e do hiperconsumo, até porque os dias na natureza tornam-se num instrumento de educação. Rui explica: “Enquanto no início do projecto o objectivo era apenas descontrair num fim-de-semana, as coisas que fomos fazendo foram transformando as nossas vidas.” Em modo selvagem, a pequena “tribo” voltou a ter tempo para sujar as mãos, partilhar e pensar, voltando à cidade mais “limpa”.