Melides é freak

O leitor Luís Robalo partilha a sua experiência no litoral alentejano.

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Melides é freak, que bom, já há militantemente poucos. O hippie chic e a esquerda caviar são dois braços da mesma vibe mas não emitem aquele frisson de uma liberdade quase anárquica.

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Melides é freak, que bom, já há militantemente poucos. O hippie chic e a esquerda caviar são dois braços da mesma vibe mas não emitem aquele frisson de uma liberdade quase anárquica.

Melides traça a linha da fronteira do litoral alentejano, a sul. A norte, veraneiam os intrinsecamente betos, os que juntam o tratamento blasé como se dirigem às pessoas na pessoa do “você”, aos chinelos Vuitton, com os pés ligeiramente encardidos, às imensas pulseiras e colares, sei lá, e que passam férias, em suas cottage de colmo e mirras, na herdade das herdades, a que já foi a mais do que tudo, que agora se desvanece em talhões cada vez mais pequenos, ainda assim caríssimos.

Melides é freak mas vai deixar de o ser.

Não é uma aldeia nem particularmente bonita, nem particularmente feia, nem tem (ainda) restaurantes particularmente dignos de estrelato. Mas tem restaurantes estrambóticos, inesperados, dados a excentricidades decorativas. Em vez de uma estátua de um ilustre conhecido local, fizeram uma instalação estatuária de uma biblioteca pública, com livros e bancos de pedra, num larguinho, ao lado de uma igreja alentejanamente linda, alvíssima, com recortes a azul e um relógio na torre sineira, que deve ter dado horas sonoras.

Melides tem casas feiosas, outras em bom estilo. Vá-se saber, concentram apontamentos excêntricos nas varandas e quintais: bonecos com roupas de gente e alimárias, de cegonhas desproporcionadas a bambis laranja choque, um festim do kitsch.

Será a chamar a atenção, ou resquício dos efeitos deletérios de produtos que os freaks dizem usar terapeuticamente?

Em abono, a maioria dos habitantes é gente que não fuma, paga impostos e já se conformou há muito.

No café dos sininhos de medronho, locais queixam-se que não têm um hospital público de jeito – à mão. Há pessoas que nunca estão satisfeitas. Pode ser que os queixosos sejam os freaks das ervas de cheiro.

Na estrada que nos dirige à praia, passa-se um parque de campismo, condição suficiente para fazer de Melides um destino popular e freak. Não o visitámos. Por fora apresenta todos os sinais de que viver temporariamente em harmonia e conexão astral com a natureza no seu estado mais puro não vai ser uma das experiências para desfrutar neste parque.

A estrada desemboca no parque de estacionamento (gratuito, sinal de que a zona ainda está descontaminada dos efeitos capitalistas das praias da ínsula de Tróia). Apresenta-se aí um conjunto de edifícios com linhas contemporâneas, a oferecerem restaurantes e bares, até que um dia, quando mudar a sorte que Melides tem de ainda ser freak, serem reconvertidos em lojas com marcas griffe e conceitos eco-trendy, negócios de tias chiques e hippies – algumas de esquerda –, que se meteram no business porque é giro, não porque precisem do dinheiro. Nascerão também, e isso sim como cogumelos, rooftops, sunset spots com música a bombar futilidade.

Daí à praia um passadiço, em madeira, com vistas para uma lagoa humilde, circundado de hortas e das floras do campo, bucólico.

No final o espectáculo da natureza esparrama-se num manto doirado, a dar o melhor de si, convidando ao desfrute incondicional dos prazeres do mar e da areia, ou simplesmente a deixarmo-nos estar sentados, repousando olhares no embalo das ondas de uma água ostensivamente verde que não tem a provar que é autêntica.

Os frequentadores, assim, sem obrigações de nada, reconciliam-se com o mundo, pondo para trás das costas as arrelias da vida. São dias para as pessoas normais, freaks ou não, descansarem delas próprias e das que as rodeiam.

O bar da praia tem uma oferta de produtos e bebidas com custo justo. Às vezes, meio adormecidos, parece sonho, materializa-se um músico com uma guitarra, hipnotizando os fins dos dias, cantando em boa voz cantigas bonitas e poéticas.

É um espaço descomprometido, simpaticamente servido por jovens ainda na fase triunfal de serem imortais (um engano que a vida dá).

Sobram dois apontamentos: consta – sussurros que se ouvem – que figuras do jet-set hippie chique estão a deslocalizar-se da Comporta para esta zona; consta também que, quando isso acontecer, Melides deixará de ser freak, o que é pena. Por seu lado, a Comporta voltará a ser um lugar desempoeirado.

O universo gere as leis das compensações, para as quais os homens não são tidos nem achados. O problema destes sítios são as melgas.

Luís Robalo