O meu Cristo morreu

O Senhor opera por caminhos tantas vezes incompreensíveis para o ser humano, mas Ele está lá. Lá no “cá”, no “ao pé”, no “à beira de”, melhor, no “dentro de nós”. E essa certeza dá-nos uma força que move montanhas.

Nascido numa família de tradição católica, como boa parte dos demais Portugueses, fui baptizado e conduzido à catequese. Um miúdo de seis anos que se enamorou pela história de vida de um Deus feito Homem, Jesus Cristo, pelo bem radical que as suas palavras encerravam, mas também pelos ritos, pela solenidade, pela proximidade com o transcendente. Aliás, o meu primeiro sonho vocacional foi ser padre, o que durou cerca de dois anos e, serenamente, creio ter perturbado os meus pais. Segui a catequese até ao crisma e era de missa dominical por gosto e por necessidade. Era um espaço de reencontro comigo e com os outros. Fazia-me falta o rito da mesa, a transfiguração de Cristo, e saía de lá fortalecido para uma nova semana.

A verdade faz-nos mais fortes

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Nascido numa família de tradição católica, como boa parte dos demais Portugueses, fui baptizado e conduzido à catequese. Um miúdo de seis anos que se enamorou pela história de vida de um Deus feito Homem, Jesus Cristo, pelo bem radical que as suas palavras encerravam, mas também pelos ritos, pela solenidade, pela proximidade com o transcendente. Aliás, o meu primeiro sonho vocacional foi ser padre, o que durou cerca de dois anos e, serenamente, creio ter perturbado os meus pais. Segui a catequese até ao crisma e era de missa dominical por gosto e por necessidade. Era um espaço de reencontro comigo e com os outros. Fazia-me falta o rito da mesa, a transfiguração de Cristo, e saía de lá fortalecido para uma nova semana.

Em finais dos vintes, inícios dos trintas, por uma série de circunstâncias, embora já fosse um católico cada vez mais descrente da estrutura da Igreja, sempre falível, visto que composta por seres humanos, deixei de sentir a necessidade de estar em comunhão com os demais fiéis na adoração do “meu” Deus. Aliás, o “meu” Deus – que nunca foi o do Antigo Testamento, mas sempre o do Novo – mudou bastante. A discordância profunda com a posição da Igreja em relação à ordenação de mulheres, a sua estrutura machista, a visão da sexualidade como “pecado”, o celibato obrigatório, a condenação dos métodos anticoncepcionais não naturais, a ostentação de altos dignitários em face da pobreza, fizeram-me repensar o que era. Como nunca acreditei em “católicos não praticantes”, assumi-me simplesmente como cristão ecuménico.

Sei bem que não precisamos de rótulos, mas a mim ajudam-me a situar-me. Revoltei-me contra Deus, praguejei, escrevi um livro de poesia que isso retrata (deus e outras coisas menores) e passei o que costuma designar-se por uma “crise de fé”. Na verdade, estava chateado com Ele, não percebia como algumas coisas eram por Ele admitidas, mas hoje sei que nunca deixei de acreditar. Fiz as pazes e, em mim, revelou-se um “novo” Deus, que também se podia chamar Alá, Jeová, Buda, Energia.

Chamo-O assim por ser essa a tradição histórico-cultural em que nasci e vivo, mas cada vez mais acredito num único Ser, comum a toda e qualquer designação que se lhe possa dar. E esse Ser só pode ser o das “periferias”, o que se senta à mesa com os esquecidos dos esquecidos, o que veio para todos, mas que, sabendo das dificuldades de alguns, é desses que deve estar ainda mais próximo. Só aí me deixei de revoltar com a aparente injustiça da parábola do filho pródigo: tu estás comigo todos os dias, mas este teu irmão estava morto e acaba de ressuscitar!

Não necessito de uma fé ritualizada, não estou nada interessado em procurar explicações científicas para aquilo que só através da crença se alcança. E ainda bem: fé e ciência, como provado por teólogos e cientistas, não têm necessariamente de andar de costas voltadas, mas também não podem usar os mesmos padrões de verificação, pois os seus objectos são demasiado apartados. Incomoda-me muito o proselitismo, sendo sim relevantes as obras e menos as palavras (a videira que dá frutos). Incomoda-me que se ache que Deus quer o nosso sofrimento, pelo que me comovo com o cumprimento de promessas, embora as compreenda tão bem (também eu as fiz).

Na verdade, não me custa a acreditar que Deus possa ter sido uma obra do engenho humano. Se o foi, benditos ou benditas aqueles que a foram burilando ao longo de séculos! A finitude não me faz sentido: as pessoas são demasiado complexas e ricas para se acabar tudo ao fim de, na melhor das hipóteses, algumas dezenas de anos. Ninguém o pode provar e nessa verdade de adesão paradoxal reside a beleza do crer. Como se acredita nas capacidades de um filho ou filha, ainda que o passado seja mau augúrio, nunca deixamos de crer.

Não há guerras religiosas, mas aproveitamento político-económico de religiões. Como também sorrio interiormente quando alguém se diz ateu ou agnóstico. Na verdade, tal não pode existir, pois ao menos sempre cremos em nós e nas nossas capacidades, ou seja, podemos ver-nos como o nosso próprio “Deus”, como a nossa energia fundamental e, para mim, isso é já crer.

É conatural ao ser humano acreditar, pois necessitamos de tal para nos realizarmos enquanto pessoas. E isso não é nenhuma menorização, mas uma graça que nos amplia e ajuda a colocar as vicissitudes em perspectiva. Bem vistas as coisas, religião, filosofia, ética, moral, direito, nas suas múltiplas diferenças, têm um travejamento comum: amar o próximo como a si mesmo e viver de acordo com regras que, se erigidas em máximas universais, considerássemos que deveriam ser seguidas por todos, por adesão natural, sem imposição (adaptando a máxima kantiana).

É esse o convite a que este tempo pascal nos interpela, este tempo etimologicamente de “passagem”, do menos bem para o bem, sem qualquer conotação de pecado. No fundo do coração de todos nós, há a diferença entre o que se pode e não pode fazer. Simplesmente, amiudadas vezes, essa voz fininha é engolida por uma outra mais potente que tudo justifica por dinheiro, posição social, instinto de defesa…

Sem olhar a religiões, havendo ou não, para cada um de nós, à nossa escolha, necessidade de ritualizações, é este o convite sempre renovado todos os dias que nos toca viver, mas que, ao menos por uma pausa lectiva ou laboral, pelo contacto mais próximo com a família, se reforça em época pascal. Oiço o Requiem – Grande Messe des Morts op. 5, de Berlioz, e comovo-me: se nós não tivéssemos sido destinados ao divino – aqui entendido como o bem ao serviço dos outros –, obras como esta e tantas outras – e em todos os estilos musicais e das demais disciplinas da Arte – jamais seriam possíveis. E repouso, por fim, os olhos, na imagem já famosa do raio de luz que incide sobre a cruz do altar-mor de Notre-Dame, no meio de lenha queimada.

O Senhor opera por caminhos tantas vezes incompreensíveis para o ser humano, mas Ele está lá. Lá no “cá”, no “ao pé”, no “à beira de”, melhor, no “dentro de nós”. E essa certeza dá-nos uma força que move montanhas.

Vou beijar quem amo e dizer às pessoas que são importantes na minha vida que me fazem muita falta. Tal como um Professor que Deus me deu a graça de conhecer, já a observar-nos a partir do Invisível que, a uma Colega e Amiga, certo dia, convocou para uma reunião. Disse-lhe: “sabe, pedi-lhe que viesse cá apenas porque tinha aqui escrito – e queria dizer-lho – que gosto muito de si”. Chamava-se (chama-se) Jorge Ribeiro de Faria e a hoje Amiga saberá quem é. Como sabe que em qualquer altura difícil para ela ou para qualquer um dos seres vivos à face da Terra, Deus convoca-nos, volta e meia, somente para uma reunião do género com ponto único na ordem de trabalhos.

Boa Páscoa ou Santa Páscoa, como preferirem!