A Internet sabe quem somos. E nós sabemos que ela sabe

Grandes e pequenas empresas usam dados pessoais para personalizar serviços, vender produtos e até antecipar necessidades. Os utilizadores têm mostrado preocupação, mas nem todos se protegem.

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Reuters/PAWEL KOPCZYNSKI

“Sim, se precisares de informação sobre alguém de Harvard... é só pedires. Tenho mais de quatro mil emails, fotografias, moradas, números de segurança social (…) As pessoas simplesmente submeteram isto. Não sei porquê. Elas ‘confiam em mim’. Idiotas do caraças.” Era com estas palavras cruas que, em 2004, pouco após o arranque do Facebook, Mark Zuckerberg prometia a um amigo acesso a dados dos utilizadores.

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“Sim, se precisares de informação sobre alguém de Harvard... é só pedires. Tenho mais de quatro mil emails, fotografias, moradas, números de segurança social (…) As pessoas simplesmente submeteram isto. Não sei porquê. Elas ‘confiam em mim’. Idiotas do caraças.” Era com estas palavras cruas que, em 2004, pouco após o arranque do Facebook, Mark Zuckerberg prometia a um amigo acesso a dados dos utilizadores.

A conversa – que decorreu num serviço de mensagens online e chegou à imprensa anos mais tarde – aconteceu numa altura em que a rede social era ainda um serviço restrito aos estudantes da Universidade de Harvard e não um gigante que ajudou a transformar o entendimento de boa parte do mundo sobre o que são as fronteiras da privacidade e o que é seguro depositar nos servidores de multinacionais.

Vários anos após aquelas mensagens, um Zuckerberg já multimilionário e presidente de uma plataforma global trocou emails com directores da empresa sobre como os dados pessoais podiam ser rentabilizados. As mensagens, enviadas entre 2012 e 2015, vieram a público no ano passado, na sequência de uma investigação do Parlamento britânico. Mostram como o Facebook discutia a possibilidade de ceder mais informação às empresas que pagassem por isso. “Queremos que as pessoas possam partilhar tudo aquilo que querem, e que o façam no Facebook”, escreveu Zuckerberg. “E, no futuro, acho que devíamos desenvolver um serviço premium para coisas como personalização instantânea.”

Os documentos deram um vislumbre sobre como os dados pessoais eram encarados pelos gestores do Facebook quando falavam em privado, mas não revelaram práticas necessariamente ilegais, ou sequer incomuns (a rede social argumentou que os emails estavam descontextualizados).

Nas últimas duas décadas, vários serviços online trouxeram novas formas de comunicação e de exposição em público das vidas de cada utilizador, e construíram negócios assentes na torrente de informação que, muitas vezes, é lá colocada voluntariamente pelas próprias pessoas. Todos os gigantes tecnológicos, bem como muitas empresas mais pequenas, usam dados para direccionar publicidade, para personalizar serviços, sugerir produtos, encontrar novos clientes, melhorar o desempenho de vendas, antecipar necessidades e perceber qual o próximo projecto em que devem trabalhar.

Introduzir no Google a palavra “pizza” é uma experiência diferente em Lisboa ou no Dubai, num computador ou num telemóvel, e consoante aquilo que se tenha pesquisado antes. Procure-se o preço de uma viagem para Paris e é fácil ser-se perseguido online por uma miríade de anúncios a carros de aluguer e hotéis, vindos de plataformas como o Booking e o Airbnb. Faça-se uma compra na Amazon e os algoritmos da empresa tentam perceber o que provavelmente vamos querer a seguir – mesmo que ainda não o saibamos. No Netflix, ainda nem os créditos do último episódio chegaram ao fim e já aparece a sugestão da próxima série, com base no que foi visto antes. No site do PÚBLICO, um sistema de recomendações também analisa os artigos lidos pelos utilizadores para sugerir outros potencialmente relevantes.

É uma realidade que não tem sido ignorada pelos utilizadores. “As preocupações com a privacidade dos dados pessoais estiveram, desde sempre, no topo das barreiras à utilização de plataformas digitais, designadamente no âmbito do comércio electrónico”, observa o académico Nuno Fortes, professor do Instituto Politécnico de Coimbra e autor de uma tese de doutoramento sobre privacidade e consumo online. “Creio que o nível de preocupação tem aumentado nos últimos anos, em paralelo com uma maior consciência dos riscos associados à cedência de dados pessoais”, acrescenta.

Também o Regulamento Geral de Protecção de Dados, uma lei europeia que entrou em vigor no ano passado, “veio dar uma maior visibilidade pública a este tema em Portugal, despertando nos utilizadores (e também nas empresas) um maior interesse e conhecimento”, refere Nuno Fortes.

Múltiplos estudos feitos desde meados da década passada indicam que os utilizadores de Internet têm grandes preocupações de privacidade, embora nem sempre ajam em conformidade. É um fenómeno conhecido como “o paradoxo da privacidade”, cujas causas e efeitos são ainda alvo de debate.

“A percepção de uma realidade e a mudança de comportamentos em função dessa constatação raramente acontece”, nota Tito de Morais, fundador da plataforma Miúdos Seguros na Net, que há anos se dedica a alertar para comportamentos de risco online, especialmente entre menores. “Geralmente é necessário experienciar um incidente para as pessoas se aperceberem de que também pode acontecer com elas e mudarem de comportamento. ‘As chatices só acontecem aos outros’ é uma percepção comum a jovens e a adultos.”

Números da Comissão Europeia indicam uma predisposição para partilhar dados online: num inquérito, três quartos dos utilizadores de Internet consideraram que partilhar informação pessoal na Internet fazia cada vez mais parte da vida moderna.

Por outro lado, seis em cada dez davam-se ao trabalho de mudar as definições de privacidade dos navegadores de Internet (como o Chrome ou o Internet Explorer). Quatro em cada dez evitavam sites específicos por terem medo de que as suas actividades fossem espiadas; um pouco mais de um terço usava software para evitar ver anúncios online; e um quarto recorria a ferramentas para que a sua actividade online não fosse monitorizada. Em Portugal, os números eram um pouco superiores, indicando uma preocupação maior.

Apesar dos cuidados, apenas 15% dos utilizadores na União disseram sentir que tinham controlo completo sobre os seus dados. Metade considerou ter controlo parcial e praticamente um terço disse não ter qualquer controlo. Os dados foram recolhidos entre 2015 e 2016, numa altura em que escândalos como o da consultora Cambridge Analytica ainda não tinham vindo a público.

As empresas, contudo, não se ficam pela análise do comportamento online quando tentam encaixar cada pessoa num perfil de idade, género, preferências, interesses, nível de rendimentos e localização.

Graças sobretudo à conectividade constante do telemóvel, muitas também tentam recolher informação sobre o que cada pessoa faz fora da Internet. E esta informação pode ser analisada para revelar a vida de indivíduos concretos. Foi o que aconteceu numa investigação do jornal The New York Times, que usou dados recolhidos por aplicações móveis para identificar pessoas e reconstruir com precisão os seus percursos do dia-a-dia. Num dos casos (em que os dados foram analisados com autorização), o jornal foi capaz de perceber as horas a que uma mulher saiu de casa para ir para a escola onde dava aulas, quanto tempo demorou numa consulta de dermatologia e descobriu que tinha passado algumas horas em casa do ex-namorado.

“Apesar de os consumidores terem uma cada vez maior informação e sensibilidade sobre a forma de utilização dos seus dados pessoais pelas empresas, não me parece que tal se traduza num conhecimento adequado, nem na adopção de práticas de protecção da privacidade efectivas”, observa Nuno Fortes. “Por outro lado, as empresas têm vindo a fazer evoluir, a um ritmo acelerado, as suas estratégias e acções de marketing ancoradas no cada vez maior volume de dados que têm ao seu dispor, o que torna muito difícil construir uma percepção alargada e actualizada, por parte dos consumidores, sobre a forma como os seus dados pessoais são usados.”