Católicos farisaicos?

É inadmissível esta concorrência desleal: que os nossos impostos ajudem a Universidade Católica, por não serem cobrados e pelo Estado a subvencionar. Jesus seria o primeiro a condenar uma iniquidade como esta e a expulsar os vendilhões do templo.

A Universidade Católica Portuguesa (UCP) é uma instituição da Igreja Católica, canonicamente erecta em 13/10/1967, reconhecida pelo Estado Português em 15/7/1971, ao abrigo, inicialmente, da Concordata de 1940 entre Portugal e a Santa Sé, mais tarde revogada e substituída pela de 2004 (cf. o seu art. 21.º, n.º 3).

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A Universidade Católica Portuguesa (UCP) é uma instituição da Igreja Católica, canonicamente erecta em 13/10/1967, reconhecida pelo Estado Português em 15/7/1971, ao abrigo, inicialmente, da Concordata de 1940 entre Portugal e a Santa Sé, mais tarde revogada e substituída pela de 2004 (cf. o seu art. 21.º, n.º 3).

O seu primeiro acto de reconhecimento pelo ordenamento jurídico português deu-se por intermédio de um Decreto-Lei (DL) do tempo de Marcello Caetano e Veiga Simão (n.º 307/71, de 15/7), que reconheceu a UCP como “pessoa colectiva de utilidade pública”, à qual cabe “ministrar o ensino a nível superior em paralelo com as restantes Universidades portuguesas”.

O agora célebre art. 10.º desse DL prevê o seguinte: “relativamente à aquisição e fruição dos seus bens e às actividades que exerça para a realização dos seus fins, a UCP goza de isenção de: a) impostos, contribuições ou taxas do Estado e das autarquias locais, incluindo o imposto de selo; b) preparos, custas e imposto de justiça, em processos que corram em quaisquer tribunais em que seja parte principal, assistente ou interveniente”.

Este DL foi revogado pelo DL n.º 128/90, de 17/4, sendo Cavaco Silva Primeiro-Ministro, Roberto Carneiro Ministro da Educação e Luís Miguel Beleza Ministro das Finanças. Curiosamente, o art. 10.º manteve-se em vigor, porque da revogação integral do DL de 1971 apenas foi excepcionado esse inciso (cf. art. 9.º do DL de 1990). Aí também se prevê que a UCP é “apoiada pelo Estado”, através de “contribuições financeiras”.

A norma em causa é claramente inconstitucional, desde logo de um prisma material, por violar o princípio da igualdade, uma vez que, ainda que se considere que a UCP não integra o sistema de ensino privado, mas sim “concordatário” – o que não resulta do RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) que, aliás, no seu art. 180.º, prescreve que esta lei se aplica à UCP, com a única ressalva das obrigações concordatárias, a que aludiremos –, na prática, o seu funcionamento e os custos pagos em propinas pelos seus estudantes colocam-na no grupo das universidades privadas. Por isso também se não entende o motivo pelo qual o reitor da UCP integra o CRUP (Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas), órgão administrativo público independente e que desempenha um papel de consulta, de entre outros, em matéria de orçamento para a área e de definição das suas grandes linhas orientadoras.

Tal não sucedeu aquando da criação do CRUP, em 1979, mas por via do DL n.º 283/93, de 18/8, mais uma vez num Governo de Cavaco, mas que Sócrates e Mariano Gago também não alteraram com a última redacção dada pelo DL n.º 89/2005, de 3/6. Está a tratar-se como diferente aquilo que é, na prática, igual, competindo a UCP com as demais privadas, as quais pagam impostos nos termos gerais das cooperativas ou das fundações que, em regra, são a forma jurídica que assumem as suas entidades instituidoras.

Por outro lado, existe inconstitucionalidade orgânica, dado que o DL de 1990, ao manter em vigor as isenções fiscais e até judiciais, só poderia sê-lo através de lei da Assembleia da República (AR) ou decreto-lei autorizado, o que não aconteceu, dado tratar-se de matéria de competência relativa do Parlamento (art. 165.º, n.º 1, al. i) da CRP).

E então porque é que, aparentemente, só agora, na sequência da reportagem da TVI estalou a polémica? Antes disso, é claro que este elefante à vista de todos e que ninguém via ou queria ver, foi “soprado” aos jornalistas por interessados. Fica à imaginação do leitor pensar quem poderão ser. Do mesmo modo que o leitor, sempre inteligente, liga os momentos políticos das decisões às pessoas que as tomaram – ou permitiram, pois Soares promulgou o diploma – e aos trabalhadores que por lá passaram antes ou depois da vida política, eles ou familiares.

Já aqui no PÚBLICO defendi que a maior representatividade de uma religião deve ter efeitos no modo como o Estado se relaciona com ela e sou dos primeiros a reconhecer a enorme qualidade e prestígio da UCP em várias áreas. Por isso mesmo, é inadmissível esta concorrência desleal: que os nossos impostos ajudem a UCP, por não serem cobrados e pelo Estado a subvencionar. Gostava de saber como e porquê e se também se fez o mesmo com as outras universidades. Jogos de influências, teias de interesses, calculismo político – os votos dos católicos dão sempre jeito.

Simplesmente, Jesus seria o primeiro a condenar uma iniquidade como esta e a expulsar os vendilhões do templo. A César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Mais ainda, a situação descrita viola a própria Concordata em vigor, o que é mais um motivo para a sua inconstitucionalidade (sendo ela fonte de Direito Internacional Público e, por isso, superior a um DL na hierarquia das normas), dado que as isenções fiscais – e nunca judiciais – aí previstas são todas elas apenas relacionadas com actividades estritamente religiosas, o que não é o caso da UCP – cf. art. 26.º Aliás, no preâmbulo deste documento lê-se que “a Igreja Católica e o Estado são, cada um na própria ordem, autónomos e independentes”.

Em menor escala, mas também se não compreende como é que, ainda hoje, o acesso à UCP pode não consistir no regime comum de exames nacionais de acesso e ser substituído por provas realizadas pela instituição (“de aptidão cultural”), para as quais a mesma até organiza cursos de preparação (pagos) – cf. art. 2.º da Portaria n.º 370/89, de 24/8, assinada por Roberto Carneiro, de novo sob o consulado cavaquista.

Não me move qualquer anticlericalismo primário, desde logo por ser cristão, mas sim a busca da justiça e da igualdade em que deve assentar a actividade de qualquer cidadão e jurista. Muito menos o facto de leccionar no ensino público e também no privado, por sempre ter respeitado muito o trabalho da UCP na área que melhor conheço, que é a do Direito. Mais, sei bem que a UCP atribui bolsas de mérito a estudantes carenciados e a outros que tenham elevadas classificações. Com os milhões que poupam, e não visando a instituição o lucro, pela sua natureza jurídica, não se percebe porque não atribui mais bolsas e não diminui as propinas.

Simplesmente, a laicidade do Estado, a sua separação das Igrejas, enquanto valores constitucionais de que a Lei de Liberdade Religiosa é um reflexo, impelem-me a não me calar para receber qualquer eventual prebenda ou para não indispor colegas que muito estimo.

Face às inconstitucionalidades, o art. 281.º da CRP determina um amplo leque de órgãos de soberania e outras entidades que têm legitimidade para suscitar a questão perante o Tribunal Constitucional, de entre eles o PR, o Presidente da AR, o PM, o Provedor de Justiça, o PGR e um décimo dos deputados. Isto para além do processo já em curso em que a UCP, segundo as notícias, contesta judicialmente a interpretação da AT no sentido de que as isenções são ilegais e inconstitucionais, em que o tribunal pode apreciar também a questão do prisma da CRP. E, ironia das ironias, a UCP não tem de pagar quaisquer custas judiciais num processo em que quer continuar a usufruir de um regime injustificado e violador da Lei Fundamental.

Haverá coragem para o fazer, sobretudo em ano de eleições? Tenho mais fé na acção judicial em curso que na actuação das pessoas que referi na hipótese anterior. Deus permita que me engane.