O circo em que Lorena castrou Bobbitt escondia uma história de violência doméstica

Uma tragédia privada tornou-se numa tragicomédia pública em 1993, quando o mundo ficou fascinado pelo casal americano. Hoje um novo documentário da Amazon põe os espectadores no banco dos réus - o que fizemos com esta dupla violência?

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Houve um momento nos anos 1990 em que “a história” em grande parte do planeta era a de uma mulher que castrou o marido. Um momento em que a Internet ainda nem sequer era a culpada por propagar a informação como fogo em palha, um momento americano que foi de todos em que o sensacionalismo da versão “mulher corta o pénis a marido” não deixou ver a outra história, de violência e abuso doméstico na sua origem. O momento em 1993 era do casal Lorena e John Bobbitt. Hoje, no momento #MeToo, uma série documental quer recentrar a história. Em Lorena.

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Houve um momento nos anos 1990 em que “a história” em grande parte do planeta era a de uma mulher que castrou o marido. Um momento em que a Internet ainda nem sequer era a culpada por propagar a informação como fogo em palha, um momento americano que foi de todos em que o sensacionalismo da versão “mulher corta o pénis a marido” não deixou ver a outra história, de violência e abuso doméstico na sua origem. O momento em 1993 era do casal Lorena e John Bobbitt. Hoje, no momento #MeToo, uma série documental quer recentrar a história. Em Lorena.

É uma tragédia privada. Foi uma tragicomédia pública. Na noite de 23 de Junho de 1993, Lorena Bobbitt foi à cozinha depois de — como contou repetidamente no tribunal e por conseguinte em directo na CNN, nos jornais ou nos talk shows — ter sido violada pela enésima vez pelo marido embriagado, viu uma faca e não se lembra de mais nada. O mundo recorda-se. Da história de como castrou John Bobbitt, saiu de casa com o pénis do marido e o lançou pela janela do carro enquanto procurava refúgio em casa de uma amiga. Lembramo-nos de que o órgão foi reimplantado após uma longa cirurgia e que se seguiram dois julgamentos, no final de 1993 e no início de 1994, uma saga que o editorial do New York Times coroaria como “a balada de John e Lorena”. 

“Todas as eras têm a sua lenda. Se ainda estivéssemos no tempo da poesia baladesca, Lorena Bobbitt teria uma balada”, começava o texto do diário, que como todos os outros na América e muitos outros no mundo, seguiu a história dos Bobbitt e a tornou num fenómeno. E não vale a pena ignorar o óbvio, como o cronista Richard Lei constatou no Washington Post durante o julgamento: “sem o órgão amputado, este caso não teria valor mediático”. Seria “só” mais um caso de violência doméstica.

Íman de mil trocadilhos e títulos sugestivos, de horas de conversa em casa ou nos média, o caso saltou fronteiras também por isso. Foi, como dizia a capa da revista People, “o corte sentido em todo o mundo”. O PÚBLICO falava na época do "interesse lúbrico" e do "carnaval" em torno do caso e enviou o seu correspondente para cobrir o julgamento de Lorena. Fonte aparentemente irresistível de humor até à porta dos dois julgamentos, onde se vendiam pénis de chocolate caseiro (a 10 dólares cada), t-shirts “Love hurts” ou cachorros-quentes cheios de segundas intenções, foi um estranho momento em que o humor — a própria Lorena, como os médicos, polícias, advogados e comentadores, não contém o riso no primeiro episódio de uma hora — toldou a uma história de dupla violência. 

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Lorena Gallo, no documentário da Amazon Allie Lee/Amazon Prime Video

“Há uma terceira personagem nesta história além de Lorena e John e somos nós, a sociedade, e o que fizemos com a informação que tínhamos disponível”, diz agora ao mesmo jornal o actor, realizador, produtor e argumentista com um Óscar Jordan Peele, que produziu Lorena para a Amazon Studios. O documentário em quatro episódios que esta sexta-feira está na Amazon Prime começa precisamente assim, no turbilhão do circo mediático, e também se questiona o que é que nós, o público, sabemos realmente sobre o caso. É que “tanto John quanto Lorena tornaram-se caricaturas nacionais”, escreveu Richard Lei, e Lorena, a imigrante equatoriana de 24 anos, tornou-se em algo mais. 

O sociólogo Evan Stark lembrava que o pénis é uma arma para um agressor sexual e que "por isso magoar o pénis é uma forma de atacar o poder do homem”. A escritora feminista Katie Roiphe postulou na época que “Lorena Bobbitt se tornou num símbolo de raiva feminina”. Hoje sente-se acolhida no movimento #MeToo e por isso decidiu voltar à televisão, 25 anos depois, para falar sobre violência doméstica e agressão sexual. Mas continua chocada.

“Em vez de se ter uma conversa séria sobre violência doméstica e agressão sexual, [a abordagem dos média] era sobre o órgão do John. A essência de toda a situação é indigna”, disse à revista Variety. Ou, como suspira no New York Times, “estão sempre focados nele”. No pénis que cortou.

Lisístrata dos anos 1990

Antes de se tornar na corporização da imagem da mulher castradora, na prova pop de como não há fúria como a de uma mulher maltratada, e no pretexto para a enésima alusão à representação da guerra do(s) sexo(s) que é Lisístrata, de Aristófanes, Lorena Gallo nasceu no Equador e cresceu na Venezuela. Chegou à Virgínia em 1987 para estudar e conheceu John Bobbitt dois anos depois, num baile. Casaram-se em 1989. Trabalhou num cabeleireiro e tornou-se na principal fonte de sustento quando o marido foi dispensado dos fuzileiros. Ainda não tinha o visto de residente naquela madrugada de Verão em Manassas, onde ainda hoje vive. 

Diz que sofria maus-tratos desde o início do casamento — abusos verbais, estrangulamentos — e que ao longo de quatro anos foi vítima de violação vaginal e anal, de um aborto forçado e ameaças de que ele a faria ser deportada. Dois dias antes da noite que os tornaria famosos, ela fez queixa à polícia por agressão, um último compasso numa dança de constantes telefonemas para as autoridades que no passado já tinham resultado pelo menos numa detenção. No documentário, o advogado de John diz que foi o seu cliente a chamar a polícia em algumas ocasiões.

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James Sehn fez parte da equipa médica que recolocou o pénis de John Bobbitt Wilfredo Lee/REUTERS

Naquele início da era Clinton, a violação dentro do casamento só era crime há pouco tempo em todos os Estados Unidos. Só no ano seguinte o futuro vice-presidente Joe Biden e a senadora Louise Slaughter veriam a lei conhecida como Violence Against Women Act, que redigiram, ser aprovada. Em 1991, Anita Hill acusara o juiz do Supremo Tribunal americano Clarence Thomas de assédio sexual e o filme Thelma e Louise, em que Louise mata um homem que ameaça violar Thelma, eram tema de forte discussão pública. No ano seguinte, O.J. Simpson era preso pelo homicídio da mulher, Nicole, e era absolvido num julgamento igualmente mediático.

John Bobbitt, que tinha 26 anos quando da castração, nega alguma vez tê-la violado ou agredido e diz que ela estava “obcecada com o seu Sonho Americano, o seu Sonho Americano, o seu Sonho Americano”, como repetiu, assim em maiúsculas, em 2018 na Vanity Fair. “Ela nunca foi abusada. Foi sempre a abusadora e cortou o meu pénis porque eu ia deixá-la”, reiterou meses depois ao New York Times. “Era como dizia a minha mãe, se ela não me podia ter então ninguém podia”, acrescenta à Vanity Fair

Em tribunal, vários amigos garantiram ter visto os ferimentos e nódoas negras no corpo de Lorena ao longo dos anos e recordaram que John se gabava de forçar relações sexuais com a mulher. Como relatava o New York Times em Janeiro de 1994, dois psicólogos forenses e um psiquiatra, nomeados pelo tribunal, atestaram que Lorena era uma mulher vítima de violência doméstica e que sofria de depressão grave quando castrou o marido, indicando que sofria também de distúrbio de stress pós-traumático. 

John Bobbitt foi absolvido do crime de violação por um júri de nove homens e três mulheres no primeiro dos dois julgamentos que para sempre, tal como a entrada na Wikipedia que surge quando se busca por apenas um deles, os unem. 

No julgamento de Lorena pela castração, cuja interrupção da transmissão em directo por causa da intervenção do Presidente Bill Clinton numa crise nuclear com a Ucrânia motivou telefonemas enfurecidos dos espectadores, ela foi ilibada pelo que a lei portuguesa consideraria inimputabilidade gerada por incapacidade acidental — “insanidade temporária” — por um júri e sete mulheres e cinco homens. Teve de cumprir um internamento de 45 dias de avaliação psiquiátrica. 

Nos anos seguintes ele, que até se chama John Wayne Bobbitt, tornou-se uma fugaz estrela de cinema — pornográfico. Primeiro com John Wayne Bobbitt: Uncut (1994), depois com Frankenpenis (1996). Foi preso e cumpriu pena por violência contra duas mulheres, é um apoiante de Donald Trump até na matrícula do carro (“DJ Trump”) e o documentário da Amazon mostra duas mulheres que dizem que ele as violou e torturou.

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John Wayne Bobbitt e as estrelas porno Krystal Gold, Veronica Brazil e Tiffany Lords na exibição do seu primeiro filme Blake Sell/REUTERS

Ela diz ter recusado 1 milhão de dólares para posar na Playboy, fundou há uma década a Lorena's Red Wagon, uma organização contra a violência doméstica que apoia crianças e mulheres, e é activista sobre o tema. É recebida nos talk shows com ovações (maioritariamente femininas) em pé, casou-se, apoiou Hillary Clinton, tem uma filha adolescente. 

Heróis e vilões

Na balada dos Bobbitt, que se divorciaram pouco depois dos julgamentos, nada é preto ou branco. Nos registos e memórias da época tanto se encontram John e Lorena no papel de vilão ou heroína. Mas uma coisa era certa: a história de violência doméstica não era central. “O facto de ela ser vítima de violação no âmbito do casamento ou de violência doméstica era um aspecto secundário da história. Tornou-se imediatamente uma história sobre a vitimização dele às mãos dela”, recordava em 2016 o activista Jackson Katz no texto do Huffington Post que o realizador de Lorena, Joshua Rofé, leu e originou a vontade de fazer esta série documental. Porque era, como o mesmo artigo resume, “o clickbait original”. 

Mas “apoia-se publicamente um acto de violência contra outro ser humano?”, lembra Linda Pershing, professora de Estudos sobre as Mulheres na Universidade Estadual da Califórnia, sobre as hesitações do público da época. Havia “ambivalência das pessoas sobre isso, ao mesmo tempo que simpatizavam com ela e empatizavam com a sua situação”, diz a académica que escreveu, em 1996, “His Wife Seized His Prize and Cut It to Size": Folk and Popular Commentary on Lorena Bobbitt.

Duas feministas de relevo público dividiam-se. A atitude de Lorena foi “um acto revolucionário” para Camille Paglia. Para Naomi Wolf, a castração foi “estritamente punitiva”. “Há situações em que uma mulher tem de matar o seu companheiro para fugir ou salvar os filhos. Se ela queria estar em segurança, podia ter-lhe atingido a rótula. A mutilação em si parece-me claramente um acto sádico”, disse ao Washington Post na altura.

“Sim, cortar o pénis a alguém é um acto muito violento. Mas a violação também é muito violenta. Acho que deviam beatificá-la. Acho que as pessoas pensam nela como uma espécie esquisita de anti-herói, mas eu penso nela só como uma heroína”, testemunhou a escritora norte-americana Carmen Maria Machado, que tinha sete anos na época, no site The Cut. E a autora de O Corpo Dela e Outras Partes (ed. Alfaguara) recorda uma nuance: “Havia uma atitude à volta dos Bobbitt que mais tarde me lembrou do caso Tonya Harding. Era um ‘ah, esse tipo de pessoas, é o que fazem’”, ou seja classismo, porque se Tonya Harding, a patinadora de origens humildes caída em desgraça depois de ser suspeita de lesionar gravemente a adversária Nancy Kerrigan era vista como “white trash”, um jornal, recorda o El País, descrevia Lorena como uma “mulher latina de sangue quente”.

Harding teve a sua reavaliação mediática um ano antes de Lorena, com Eu, Tonya, o filme nomeado para os Óscares, e semelhantes visitas analíticas da imprensa de referência. Também Monica Lewinsky, outra mulher com quem Lorena se identifica pela forma como foi tratada pelos média, voltou a enquadrar-se e pediu, no The Cut, desculpas a Lorena por não se ter informado mais sobre o caso na altura. 

O caso Bobbitt deixou lastro na cultura popular. Está no livro e no filme Clube de Combate ou em O Teatro de Sabbath de Philip Roth, mas também no rap de Eminem em Evil Twin (2013). Extravasou para a ciência quando o verme aquático eunice aphroditois, que reage com tal rapidez aos estímulos que chega a cortar os seus agressores ao meio, passou a ser conhecido também como o Verme Bobbitt. E impactou a lei. “O diálogo nacional que começou com Anita Hill, Lorena Bobbitt, O.J. Simpson finalmente criou um discurso nacional que nos deu alguma tracção na legislação”, lembra no New York Times Katie Ray-Jones, responsável pela National Domestic Violence Hotline. 

Lorena Bobbitt, que há 25 anos não se chama assim, continua a ser protagonista de uma história em que foi tanto vítima quanto agressora. Símbolo de raiva. “A narrativa que percebi até entrar na idade adulta e começar a ler sobre o caso foi que ele era uma espécie de extensão natural do feminismo. Havia um tom ‘isto é o que acontece quando as mulheres fazem o que querem ’”, lembra a escritora Carmen Maria Machado. Kim A. Gandy, ex-presidente da National Organization of Women, confirma: “A abordagem muitas vezes era qualquer coisa como ‘bom, isto é o que vocês feministas sempre quiseram’”. 

Hoje, “estamos a olhar para a agressão sexual e para a violência doméstica por uma lente diferente”, congratula-se Lorena Gallo na Variety, envolta na moldura #MeToo. “A minha história é a história de todas as vítimas. (…) Temos este documentário para ver e fazer as pessoas compreender o grau de trauma que uma vítima sofre.” Katie Roiphe, que entronizou Lorena como símbolo da raiva, escreveu em 1993 o que poderia ser uma das urgências #MeToo desde 2017 — “o problema não é a raiva, mas a raiva que não é examinada nem controlada. A raiva que não é examinada engana e divide-nos; torna impossível falar e ouvir, pensar com nuances, com clareza”.