Para lá de tele-evangelista e de guru de auto-ajuda

Não resistiu a fazer mais uma marcelice no PSD. Terão razão os que dizem que lhe está no ADN?

Até pode não ser Luís Montenegro o próximo líder do PSD. Até pode ser que Rui Rio aguente como presidente do PSD até às legislativas e mesmo para lá delas. Pode ser que o seu poder partidário tenha começado a acabar no conselho nacional de quinta-feira e o resultado obtido se revele uma vitória de Pirro. Ou, pelo contrário, a moção de confiança que ganhou, com 75 votos a favor, 50 contra e uma abstenção, seja o reforço de liderança que precisava. As variantes do processo aberto são múltiplas. Uma certeza parece existir, depois do conselho nacional no Porto Palácio, as feridas no PSD ficaram não só expostas mas aptas a serem regadas com sal. A ruptura entre a ala liberal e a ala social-democrata do PSD foi oficializada em votação e as clivagens entre ambas não existem apenas em torno da estratégia de alianças.

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Até pode não ser Luís Montenegro o próximo líder do PSD. Até pode ser que Rui Rio aguente como presidente do PSD até às legislativas e mesmo para lá delas. Pode ser que o seu poder partidário tenha começado a acabar no conselho nacional de quinta-feira e o resultado obtido se revele uma vitória de Pirro. Ou, pelo contrário, a moção de confiança que ganhou, com 75 votos a favor, 50 contra e uma abstenção, seja o reforço de liderança que precisava. As variantes do processo aberto são múltiplas. Uma certeza parece existir, depois do conselho nacional no Porto Palácio, as feridas no PSD ficaram não só expostas mas aptas a serem regadas com sal. A ruptura entre a ala liberal e a ala social-democrata do PSD foi oficializada em votação e as clivagens entre ambas não existem apenas em torno da estratégia de alianças.

Dependerá da resiliência de Rio a sua capacidade de se manter na liderança do PSD até às legislativas de 6 de Outubro ou depois delas. É sabido que Rio cresce no confronto e este conselho nacional foi prova disso. Mas quando um líder do PSD sente necessidade de testar a confiança do partido em conselho nacional, isto significa que o desgaste do seu poder é uma constatação prática e que, num prazo mais ou menos dilatado, pode ser defenestrado ou obrigado a atirar a toalha ao chão. Exemplo disso são os processos que levaram às demissões do primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão, em 1982, e do vice-primeiro-ministro Carlos Mota Pinto, em 1985, como o PÚBLICO recordou na quinta-feira.

A procissão no PSD ainda vai, portanto, no adro, mas provocou já um episódio grave que extravasa a vida deste partido. Falo da insólita decisão do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, de receber Montenegro na segunda-feira, no Palácio de Belém. O próprio Presidente sabia quão insólita era a sua atitude. Por isso, solicitou um encontro com Rio num hotel do Porto, na sexta-feira, procurando compor e aparentemente equilibrar o quadro que criou. Pior, Marcelo Rebelo de Sousa permitiu que Montenegro fizesse declarações aos jornalistas sobre a situação interna no PSD dentro do Palácio de Belém.

Não são perceptíveis, pelo menos para mim, os critérios ou as razões institucionais que levaram o Presidente da República a receber, na sede oficial da primeira figura da hierarquia do Estado, um militante do PSD que já não é deputado nem dirigente, tão-só porque lançou um desafio de disputa da liderança a Rio, pedindo eleições directas. Desde quando é que, havendo uma disputa de poder dentro de um partido, o Presidente da República recebe o desafiador?

Mais, a disputa de poder em causa é no PSD. Ora, Marcelo Rebelo de Sousa​ tem a militância suspensa desde que é Presidente da República, mas faz parte da história deste partido desde a fundação e foi seu líder entre 1996 e 1999. Além disso, sabe melhor do que todos o que representa na vida do PSD o desafio de Montenegro a Rio. Viveu momentos assim no passado e foi mesmo actor de primeiro plano de muitos deles. Conhece a história do PSD. Escreveu até sobre ela. Sabe o que significa a convocação de um conselho nacional para discutir a confiança no líder.

A verdade é que Marcelo Rebelo de Sousa interferiu na vida interna do PSD, como acusou no sábado passado o deputado e dirigente do partido Miguel Morgado ao PÚBLICO. Como Presidente da República, sabe que não o deve nem pode fazer. Mas não resistiu a meter-se no assunto, a aparecer na fotografia, a surgir como interlocutor de um confronto partidário, usando o seu estatuto de Presidente da República. Não resistiu a mais uma marcelice no PSD. Terão razão os que dizem que lhe está no ADN?

Há quem defenda que a popularidade do Presidente canaliza as pulsões populistas e estabelece um vínculo de empatia com a população que serve de travão a forças políticas populistas. O facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter rasgado o padrão institucional de exercício do mandato presidencial não tem problema algum, pelo contrário. É de aplaudir o desempenho próprio e criativo da magistratura de influência. Assim como o modo firme como, em momentos-chave, fez frente ao Governo. É também meritório que o Presidente esteja presente junto da população e que esta sinta a sua proximidade.

Mas, por vezes, parece que Marcelo Rebelo de Sousa não resiste à atracção do abismo e que entra numa espécie de voragem autofágica do seu próprio peso institucional, correndo o risco de, a prazo, desgastar em absoluto a gravitas do mandato que ocupa. E ainda que todos ou quase todos achem graça — e até encanto — ao estilo entre o tele-evangelista e o guru de auto-ajuda que criou, a verdade é que o episódio do encontro com Montenegro está para lá disso. É um desrespeito pela instituição Presidente da República e pela autonomia dos partidos políticos.