Chinatown de São Francisco, um lugar de contraste

Afinal, Chinatown já não é puramente chinesa, aspecto visível, por exemplo, na fusão de arquitectura nos edifícios, nas inúmeras bandeiras do Taiwan a assinalar o sentimento de maior proximidade à democracia, e até nos famosas bolinhos da sorte que, ao que parece são uma fabricação norte-americana.

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Robert Galbraith/Reuters

Numa ruela de Chinatown, em São Francisco, encontro uma senhora sentada, debruçando-se sobre uma espécie de caixote. Segura um pau, com o qual vai batendo, sem pressa, na caixa. “Está a secar peixe”, diz o meu pai, aludindo a um processo de confecção artesanal. Agarro na máquina, ansiosa. Há alguma coisa que me cativa, mas não consigo para já traduzir em palavras. O graffiti em pano de fundo acentua o entusiasmo: há um contraste imprevisto entre aquela postura e toda a envolvente da cidade.

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Numa ruela de Chinatown, em São Francisco, encontro uma senhora sentada, debruçando-se sobre uma espécie de caixote. Segura um pau, com o qual vai batendo, sem pressa, na caixa. “Está a secar peixe”, diz o meu pai, aludindo a um processo de confecção artesanal. Agarro na máquina, ansiosa. Há alguma coisa que me cativa, mas não consigo para já traduzir em palavras. O graffiti em pano de fundo acentua o entusiasmo: há um contraste imprevisto entre aquela postura e toda a envolvente da cidade.

Volvido o momento, regozijo-me com o resumo encontrado. É que Chinatown apresentou-se assim, aos meus olhos: um lugar de contraste. Numa rua vê-se uma mulher a secar peixe. Resquícios de uma certa ancestralidade. E a escassos passos a pé — não fosse o Finantial District o bairro vizinho — arranha-céus imponentes, a assinalar toda a pujança voltada para o futuro dos Estados Unidos. Pergunto-me como podem dois ambientes tão diferentes conviver de forma pacífica?

It’s a concept, a city within a city”, diz-nos o José Correal durante uma tour pelo centro da cidade. É mexicano, um exemplo da diversidade dos Estados Unidos e, mais especificamente, da presença do México neste estado norte-americano. Curiosamente, é com ele que viajamos pela Chinatown de São Francisco, a mais antiga da América do Norte. Conta-nos que surgiu com a famosa corrida ao ouro, que trouxe centenas de imigrantes à Califórnia. Explica-nos que já esteve em risco de desaparecer, mas o terramoto e consequente incêndio de 1906 convenceram a administração local de que a mão-de-obra chinesa seria preciosa para a reconstrução da cidade. “Business as usual”, esclarece, deixando clara a oposição à persistência e hegemonia chinesas, não só aqui mas no mundo todo.

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Teresa Lencastre

Persistência é uma boa palavra para descrever o lugar. A fisionomia, a língua, os costumes, a religião, a gastronomia e toda a cultura chinesa parecem persistir, numa bolha obstinada e indiferente. É como se entrássemos numa Disneylândia chinesa só que, ao contrário de um parque de diversões, nem tudo no bairro “é para turista ver”. Não descurando o potencial turístico, há aqui uma identidade verdadeira, vivida e reforçada, parece, pelo isolamento e resistência à mistura. 

Este embate à distância de um passo impõe, precisamente, uma reflexão sobre a dicotomia entre isolamento e mistura, no cerne de temas tão actuais como a emergência de nacionalismos ou a descredibilização do paradigma de aldeia global. Haverá limites à preservação da cultura? E a miscigenação é ou não é um princípio a promover? Faz sentido o conceito de “city within a city” ou será antes pura miopia? 

Entre perguntas de difícil de resposta percebo que, afinal, Chinatown já não é puramente chinesa, aspecto visível, por exemplo, na fusão de arquitectura nos edifícios, nas inúmeras bandeiras do Taiwan a assinalar o sentimento de maior proximidade à democracia, e até nos famosas bolinhos da sorte que, ao que parece são uma fabricação norte-americana. São sinais de mistura, ainda que tímidos, a preconizar uma hibridização, responsável, quem sabe, pelo clima de entendimento que circula no ar.

Chego ao fim deste texto menos esclarecida do que gostaria, mas com vontade de retomar a descrição da mulher chinesa e o rebuliço que a imagem me provocou. Agora, já consigo traduzir o que senti e o contraste não é a única palavra que me ocorre. Apesar de admitir os malefícios do isolamento e até alguma entropia de lugares como este, persiste uma ideia boa. Não fosse o contraste, o embate, ou a diferença, haveria lugar para o encantamento? É que aquilo que nos separa é também a eterna possibilidade da descoberta recíproca… E do encantamento.