O Borda d’Água faz 90 anos e ainda ajuda vendedores a pagar a renda

Diz quem compra que a previsão de chuva “bate quase sempre certo”. O “verdadeiro almanaque” com repertório “útil a toda a gente” é feito na editorial Minerva, em Lisboa. Criado para agricultores, é hoje lido por vários tipos de leitores. A Lua é o grande farol desta publicação vendida por muitos que andam a pedir na rua.

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Pode ou não vender o Borda d’Água, mas António da Silva, 61 anos, consegue sempre receber algumas moedas. Vésperas de Natal, compraram-lhe apenas dois exemplares – 2,30 euros cada, só metade é que foi lucro. Em esmolas conseguiu bem mais: entre 20 e 30 euros. “Há pessoas que não querem comprar, mas dão [dinheiro]; há outras que dão cinco euros para comprar, outras que não querem o troco”, conta no dia a seguir ao Natal, à porta da estação de comboios em Sete Rios.

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Pode ou não vender o Borda d’Água, mas António da Silva, 61 anos, consegue sempre receber algumas moedas. Vésperas de Natal, compraram-lhe apenas dois exemplares – 2,30 euros cada, só metade é que foi lucro. Em esmolas conseguiu bem mais: entre 20 e 30 euros. “Há pessoas que não querem comprar, mas dão [dinheiro]; há outras que dão cinco euros para comprar, outras que não querem o troco”, conta no dia a seguir ao Natal, à porta da estação de comboios em Sete Rios.

Coxeando, António Silva, reformado pensionista, ex-servente de pedreiro, precisa de canadianas por causa de um acidente de trabalho: há anos o eixo de uma grua tombou para cima dele, conta-nos, enquanto sobe umas escadas com dificuldades.

Hoje circula pelas carruagens do metro de Lisboa com os Borda d’Água numa mala ao peito, a apregoar: “Ajudem-me por favor, um cêntimo que seja, mesmo que não queiram comprar nada. Ao menos um bocadinho de pão que seja.” Diz sobre o almanaque: “Mercado, jardinagem, marés”.

Em 2019, o Borda d’Água faz 90 anos. Ainda hoje ajuda a pagar rendas. António da Silva vive no Bairro Alentejano, em Penalva, e dia sim, dia não vem a Lisboa, para vender “o verdadeiro almanaque” como está escrito na capa. Assim complementa a sua reforma. Se fica parado, por exemplo, não consegue mais do que uma ou duas moedas; é por isso que, apesar das dificuldades de locomoção, escolhe circular de carruagem em carruagem, até ao Rossio, passando nas linhas azul, verde e azul.

A venda e peditório não funcionam em todas as linhas: a vermelha, que vai para o aeroporto, não costuma ter gente que o ajude, “é mais estrangeiros”.

“É um repertório único de interesse geral”, apregoa de novo para os potenciais clientes do Borda d’Água ouvirem. “Traz tudo sobre signos, jardinagem, agricultura, marés, contém todo o repertório de interesse geral, do astronómico ao religioso.”

Sentada num banco dentro do metro, Ilda Neto chama António Silva, passa-lhe moedas, pede o almanaque. Assistente operacional na ilha da Madeira, gosta do Borda d’Água por causa das indicações para a horta que tem em casa onde cultiva milho, feijão, cana-de-açúcar. Compra o Borda d’Água para saber quando pode preparar a terra para o milho ou a batata. “Venho ver as luas. Faz diferença. Depende do que a gente planta”, comenta.  

Para "memória futura"

Na porta de vidro da loja de Rohit Himatlal, no Martim Moniz, está colada a primeira página do Borda d’Água. O dono chama-lhe um mini-hipermercado. É aqui, onde se vendem desde utensílios de cozinha a perfumes, de pastilhas elásticas a produtos para o cabelo ou fita-colas, que António Silva vem buscar os seus exemplares para vender na rua.

Há 18 anos que esta drogaria de revenda e venda ao público distribuiu o Borda D’Água. “Havia muito vendedor de rua do Rossio que se abastecia aqui de coisas pequenas. O Borda D’Água era muito pedido”, conta Rohit Himatlal, 48 anos, português de origem indiana nascido em Moçambique.

Quando começou a distribuir o almanaque, Rohit Himatlal não tinha percebido que se vendia tanto. Chega a haver alturas em que se torna o produto da sua loja com mais saída – por exemplo, próximo da feira da Golegã “vende-se bastante, porque apanha muito agricultor”. Estamos a falar de vendas de 25 a 30 mil exemplares num ano.

Dias para plantar, o horóscopo, as horas do pôr-do-sol, as fases das Lua: é isto que as pessoas procuram no almanaque, comenta. Muitos também compram porque os pais já o faziam, torna-se tradição, continua o vendedor. Também há a “nova tendência de as pessoas fazerem as hortas” nos seus quintais em Lisboa e o almanaque é útil para isso. A vantagem é que “não é um jornal, não se deita fora, fica lá para memória futura”, comenta.

Mais do que venda directa do almanaque, a drogaria de Rohit Himatlal funciona sobretudo como ponto de distribuição. Vende para quiosques ou papelarias. Marina Antunes, 58 anos, é uma das compradoras. Está sentada em frente ao seu quiosque nos Restauradores onde se empilham livros antigos, cromos, calendários dos vários clubes de futebol e de animais, mapas, livros aos quadradinhos, lenços de papel e o Borda d’Água. Passam vários turistas, mas poucos param. “A minha mãe já vendia. Começou do chão, depois em tabuleiros e depois no quiosque.”

É caso para dizer que Marina Antunes está no negócio desde que nasceu. “Só tive três dias em casa, vinha todos os dias para a venda com a minha mãe”, conta. Fez a quarta classe e seguiu depois as pisadas da mãe na rua. As coisas amontoam-se desordenadas dentro do quiosque, algumas publicações são visivelmente antigas. Ela, doente, lamenta não conseguir ter as coisas arrumadas. O negócio do quiosque está em declínio, mas dá para ir sobrevivendo. “O Borda d’Água foi sempre o mesmo, foi sempre vendável. A maioria das pessoas que compram são as pessoas antigas. Já se vendeu mais, mas vende-se na mesma”. Marina Antunes também é leitora e garante que é uma “mais-valia” para tudo. “Se chove ou não, bate quase sempre certo.”

Cerca de 270 mil exemplares

Narcisa Fernandes, a editora e directora do Borda d’Água, sabe que a venda do almanaque ajuda muitas pessoas. Inclusive ajuda alguns a pagar a renda, comenta, na Rua da Alegria, onde o almanaque é impresso, dobrado e empilhado moda antiga, com cordéis. As receitas correspondem a uma grande fatia do lucro da Editorial Minerva - pode mesmo dizer-se que também ajuda a editora a sobreviver.

Criado para agricultores, o Borda d’Água é hoje lido por vários tipos de leitores, explica a directora. Hoje pode não ter tiragens de 350 mil exemplares como um dia chegou a ter, mas não deixa de ser menos popular - agora são cerca de 270 mil. “Ainda não temos as máquinas [a imprimir] e já nos estão a telefonar”, comenta.

De Julho e até Dezembro são os meses em que vende mais. A partir do Carnaval, as vendas caem.

Na capa do Borda d’Água há um senhor com um chapéu, óculos, bengala e fraque. Um detalhe: a ferradura vermelha distingue o original dos falsos, explica Narcisa Fernandes, que está na Editorial Minerva há 52 anos, ou seja, desde os 14. Tem havido muita contrafacção com fotocópias. “Já perdi a conta dos processos em Tribunal”, comenta. “Agora ponho uma cor por trás [uma bola a simbolizar a Lua cheia] que é difícil de fotocopiar.”

A directora começou como aprendiz, a carimbar os Borda d’Água, acompanhando Artur Augusto Campos, que esteve à frente do Borda d’Água durante cerca de 40 anos. Ela ia batendo à máquina e fazendo as correcções.

Foi ela quem decidiu por à frente do almanaque uma mulher em 2008. Há quatro anos assumiria a edição. “Tem dado certo. O meu receio era nas previsões do tempo. Em 2018 disse que o ano ia correr como antigamente e o que é certo é que este ano tivemos Primavera, Verão, Outono e agora o Inverno.”

Para 2019, prevê que o ano será parecido com 2018, isto pelas “contas que fez com as fases da Lua” e com os sete dias da semana. A fórmula para calcular a meteorologia? “É segredo.”

Mas comenta: “A nossa vida é uma bola. Se formos ver o passado e o tempo se calhar vamos encontrar novamente as mesmas coisas.”

A Lua é o farol do almanaque que prevê o tempo

As previsões do Borda d’Água dão um 2019 auspicioso. O “Juízo do Ano”, texto que vem sempre na contracapa, diz que vai ser o planeta Marte a reger o início de 2019, e isso quer dizer que estarão presentes “sentimentos competitivos e de conquista”. No horóscopo chinês, o ano pertence ao Porco, ou seja, chega ao fim um ciclo de 12 signos daquele zodíaco e por isso espera-se um “ano feliz”. Será também o Ano Internacional das Línguas Indígenas e o Ano Internacional da Moderação.

A 1 de Janeiro o Sol nasce às 7h55 em Lisboa e no Porto cinco minutos depois. Aumentam os dias naquele mês em 43 minutos - se for Lisboa - e em 47 minutos - se for no Porto. O ditado deste primeiro mês é “em Janeiro: sete casacos e um sombreiro”. Ficamos também a saber que faltam por “vencer” 334 dias até final do ano quando o mês chegar ao fim. Que a 21 vai estar frio, e é noite de Lua cheia. Se tiver uma horta pode semear couve, repolho e rabanete ou então alface.

Em Janeiro, não haverá chuva segundo aquele almanaque, tirando dia 14 e dia 27. Mas se por acaso nevar no mês seguinte, em Fevereiro, “não faz bom celeiro”. Abrindo uma folha ao acaso, sai “Setembro molhado: figo estragado”. Os dias diminuem 1h12 em Lisboa e no Porto 1h18. Na horta é de semear agrião, cenoura, chicória, feijão, nabo, é plantar com as primeiras chuvas morangueiros e regar até pegarem, aconselha.

Criado sobretudo para os agricultores, o Borda d’Água tem como grande farol a Lua, explica a directora Narcisa Fernandes. O quarto crescente e o quarto minguante são as duas fases importantes para a agricultura. Cortar madeira é no quarto minguante. Se quer que algo cresça, planta no quarto crescente.

Já as tabelas sobre eclipses que aparecem nas últimas folhas, por exemplo, são fornecidas pelo Observatório Astronómico de Lisboa: em 2019 haverá três eclipses do Sol e dois da Lua.

Os oráculos que Narcisa Fernandes escreve são uma combinação do tradicional e do novo, o que diziam antigamente sobre os signos e o que dizem agora, conta. É também ela quem escolhe os ditados. Agora que estamos a chegar ao fim do ano, lembramos : “Em Dezembro descansar, para em Janeiro trabalhar”.