Um “irritante” que ainda sangra em Angola

Ulika queria um pedido de desculpas e, ironicamente, até teve dois. Mas para o 27 de Maio continuar silenciado em Angola.

Não se sabe bem porquê, mas a palavra pegou. Há um problema entre Portugal e Angola? Não, há um “irritante”. À falta de melhor, esta palavra começou a designar tudo. Não como adjectivo (o que incomoda ou exaspera), mas como substantivo, provavelmente procurando o seu parente jurídico próximo, o “írrito”, algo “sem efeito, sem validade”, segundo os dicionários. Por isso, se há um “irritante” (chamemos-lhe assim), poderá ser “irritável”, ou seja, seguindo o significado jurídico da palavra, poderá ser anulado. Neste caso, porém, o “irritante” é outro. Que não se interpõe na diplomacia, mas sangra em Angola.

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Não se sabe bem porquê, mas a palavra pegou. Há um problema entre Portugal e Angola? Não, há um “irritante”. À falta de melhor, esta palavra começou a designar tudo. Não como adjectivo (o que incomoda ou exaspera), mas como substantivo, provavelmente procurando o seu parente jurídico próximo, o “írrito”, algo “sem efeito, sem validade”, segundo os dicionários. Por isso, se há um “irritante” (chamemos-lhe assim), poderá ser “irritável”, ou seja, seguindo o significado jurídico da palavra, poderá ser anulado. Neste caso, porém, o “irritante” é outro. Que não se interpõe na diplomacia, mas sangra em Angola.

Trata-se do 27 de Maio de 1977, esse período sangrento do qual ainda não se fez o devido luto nem se tiraram as necessárias lições. Há livros, artigos, testemunhos, feridas abertas que ainda não sararam, mas a título oficial reina o mais absoluto e incómodo silêncio. Que, como devem ter reparado, foi quebrado por estes dias, em Portugal, durante a visita oficial do novo Presidente angolano, por uma jovem cidadã angolana cuja vida está ligada a esses trágicos acontecimentos: o pai foi fuzilado, na sanha persecutória desses dias em que tudo valia (torturas, espancamentos, execuções) contra um fantasma chamado “fraccionismo.”

Antes da visita, a jovem em causa, Ulika da Paixão Franco, enviou uma carta à imprensa sugerindo que alguém perguntasse ao Presidente angolano se tencionava “pedir desculpas aos órfãos, vítimas e familiares do 27 de Maio que foram obrigados a fugir do seu país, deixando as suas casas e haveres na sequência deste acontecimento.” Mas acabou por ser ela própria a interpelar João Lourenço, na entrevista colectiva que este concedeu num hotel lisboeta, no dia 24 de Novembro. Quanto uma jornalista da TSF fez uma pergunta sobre o 27 de Maio, Ulika levantou-se e pediu: “Posso ler o poema pela alma do meu pai?” Um assessor interpelou-a: “Ulika, peço desculpa mas não é o momento certo.” O Presidente, esse, foi mais cordato. Pediu que a deixassem falar, embora adiantasse: “Podemos fazê-lo fora daqui. Aqui, estão jornalistas para fazer perguntas.” O 27 de Maio, disse o Presidente, é “um dossier delicado” que ainda representa “feridas profundas”. Ulika pediu, de novo, permissão para ler o poema. “Não permito, peço desculpa”, respondeu João Lourenço. Que até poderá ter outro olhar sobre o 27 de Maio, porque a sua mulher, Ana Dias Lourenço, foi detida nesse período infame, embora tenha sido ilibada e libertada.

A história de Ulika contou-a ela, detalhadamente, em carta enviada aos representantes das repúblicas de Portugal e de Angola e que também distribuiu à imprensa. Resume-se assim: nascida em Luanda, em 6 de Abril de 1976, veio para Portugal com a idade de 14 meses, “com apoio de estranhos e de forma clandestina”, já que a mãe se encontrava vigiada e com liberdade condicionada após o “desaparecimento” do pai (que fora fuzilado). Veio com problemas de saúde graves, foi seguida por médicos, recuperou com dificuldade e a mãe acabou por se lhe juntar quando conseguiu um salvo-conduto, não mais voltando a Angola. Ulika formou-se, trabalha em Portugal, vai regularmente a Angola (escreve que um dia lá ficará, “para morrer no país que me viu nascer”) mas insiste num ponto: quer “depositar lírios” no país onde estão as memórias e vivências espirituais do seu pai, quer que a mãe ouça um pedido de desculpas formal, que ver a família recuperar o bom nome e não voltar a ser apelidada, quando vai a Angola, como “a portuguesa filha do fraccionista”

Ulika da Paixão Franco queria um pedido de desculpas e, ironicamente, até teve dois. Mas nenhum correspondeu ao seu desejo, pelo contrário. Polidamente, afastou-se o “irritante.” Dois dias depois, o Jornal de Angola publicava uma entrevista com Ulika afirmando que ela verá com esperança a mudança operada em Angola e citando-a em seguida: “Por isso é que tive a coragem de falar com o comandante” (assim chamou ao Presidente angolano). Ainda segundo o jornal, e a par de um pedido de desculpas aos familiares do 27 de Maio (o que competiria ao Presidente), Ulika sugere que “se construísse um memorial, um jardim com os nomes dos mortos nas árvores, para que as crianças conhecessem a história.” Será preciso esperar muito para que em Angola se viva um momento assim?