Casos de microcefalia em Angola aumentaram por causa do vírus Zika

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Emiliano Cula, de dez meses, a fazer fisioterapia em Luanda para estimular o controlo dos seus músculos STEPHEN EISENHAMMER/REUTERS

Emiliano Cula começa a chorar assim que os seus dedos fininhos, enrolados num punho firme, são esticados pelo fisiatra para estimular o controlo motor. Nascido nos arredores de Luanda, a capital angolana, o rapaz de dez meses tem microcefalia, um defeito congénito raro caracterizado por uma cabeça pequena e problemas de desenvolvimento graves. Ainda não se consegue sentar direito e tem dificuldade em ver e ouvir.

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Emiliano Cula começa a chorar assim que os seus dedos fininhos, enrolados num punho firme, são esticados pelo fisiatra para estimular o controlo motor. Nascido nos arredores de Luanda, a capital angolana, o rapaz de dez meses tem microcefalia, um defeito congénito raro caracterizado por uma cabeça pequena e problemas de desenvolvimento graves. Ainda não se consegue sentar direito e tem dificuldade em ver e ouvir.

“Não sabem o que lhe casou estes problemas”, diz a mãe de Emiliano Cula, Marie Boa, enquanto se abriga debaixo de um guarda-chuva azul da precipitação de Verão. “O médico disse que talvez tenha sido causado por um mosquito, mas eu não sei se isso é verdade”, acrescenta Marie Boa, de 18 anos, que não sabe se o seu primeiro filho alguma vez irá andar ou falar.

Emiliano Cula é pelo menos um dos 72 bebés que nasceram com microcefalia em Angola entre Fevereiro de 2017 e Maio de 2018, e que se suspeita que sejam vítimas de um surto emergente do vírus Zika. A maioria dos casos não é reportada. Mas um relatório interno da Organização Mundial da Saúde (OMS), que a agência Reuters obteve, concluía em Abril que tinham sido confirmados dois casos de uma estirpe perigosa do vírus Zika no início de 2017 e que, desde então, têm-se identificado casos de microcefalia – constituindo “provas fortes” da existência em Angola de um aglomerado de casos (cluster) de microcefalia relacionada com o Zika.

A falta de dados e testes de diagnóstico no país, a par do sistema de saúde muito inadequado, tornou difícil seguir o surto. Mas novos resultados de uma equipa de investigadores em Portugal sugerem que este surto é o primeiro no continente africano envolvendo a estirpe asiática do vírus Zika.

Foi a estirpe asiática do Zika que provocou pelo menos 3762 casos de defeitos congénitos relacionados com este vírus só no Brasil desde 2015, incluindo microcefalia, bem como surtos graves noutros países latino-americanos. Agora os médicos e os investigadores receiam que se dissemine de Angola para outros países no continente africano.

Num email de resposta às perguntas da Reuters, o Ministério da Saúde de Angola diz que tinha relatos de 41 casos de Zika e 56 casos de microcefalia desde Janeiro de 2017, quando começou a recolha de informação. Não é claro por que é que os números diferem dos do relatório interno da OMS.

A falta de capacidade para fazer testes significa que muitos casos de microcefalia não são detectados, acrescenta o ministério, notando ainda que a microcefalia tem muitas causas. “Provavelmente nem todos os casos podem ser atribuídos ao Zika”, afirma o ministério, listando uma série de outras causas, como a sífilis e a rubéola.

Este surto em Angola surge numa altura em que a atenção do mundo deixou para trás o Zika e em que a maior parte dos mais de 1000 milhões de dólares (cerca de 870 milhões de euros) de fundos dos Estados Unidos alocados ao combate contra a doença já foi gasta. “Não podemos deixar que a nossa atenção sobre este assunto caia”, nota Eve Lackritz, a médica que coordena a task-force da OMS sobre o Zika. “Temos de estar vigilantes e ter uma resposta constante.”

A epidemia no Brasil impulsionou a OMS a declarar a existência de uma “emergência de saúde pública de âmbito internacional” em Fevereiro de 2016 para investigar e, em última análise, identificar o vírus que causa a microcefalia e outros defeitos congénitos. Eve Lackritz está preocupada com uma sensação de benevolência agora que diminuiu a crise na América latina. “O nosso trabalho está a começar”, refere numa entrevista telefónica. “Precisamos de atenção continuada e investimento para garantir que protegemos as mulheres e os bebés em todo o mundo.”

Para Eve Lackritz, ainda há grande necessidade de diagnósticos melhores, mais capacidade laboratorial e programas de monitorização dos defeitos congénitos.

Actualmente, apenas um laboratório em Angola está a fazer testes ao Zika, segundo o Ministério da Saúde angolano. Para melhorar a velocidade e o rigor dos diagnósticos, os laboratórios fora da capital angolana precisariam de ter capacidade de diagnóstico.

O vírus em África

Descoberto inicialmente em 1947 na floresta tropical de Zika, no Uganda, o vírus esteve sossegadamente em circulação durante anos, provocando sintomas moderados parecidos com a gripe nalgumas zonas de África e da Ásia. Com o tempo, o vírus divergiu em duas linhagens genéticas distintas – as linhagens africana e asiática – e nenhuma delas foi inicialmente associada a grandes epidemias.

No final de 2007, a estirpe asiática desencadeou o primeiro grande surto de Zika em seres humanos na ilha de Yap, na Micronésia, infectando 73% dos habitantes com mais de três anos. Em 2013, um surto na Polinésia Francesa foi o primeiro em que se estabeleceu uma relação com a microcefalia.

O primeiro caso confirmado laboratorialmente da estirpe asiática no Brasil foi em 2015. Em 2016, o vírus, transmitido pelo mesmo mosquito que transporta os vírus da febre de dengue e a febre-amarela [o Aedes aegypti], tinha-se espalhado para quase todos os estados no Brasil, atingindo duramente o Nordeste tropical. Nasceram milhares de bebés com a cabeça pequena e deformada.

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O mosquito Aedes aegypti, um dos transmissores do vírus Zika JAIME SALDARRIAGA/Reuters

Até agora, não foi estabelecida uma relação entre a estirpe africana e a microcefalia, razão pela qual as autoridades de saúde estão preocupadas com o aparecimento da estirpe asiática em Angola, um país que é uma das grandes plataformas para viajar para o resto de África.

Há responsáveis da saúde que estão intrigados pelo facto de, até agora, o único surto confirmado da estirpe asiática do Zika em África – em Angola, no continente, e em Cabo Verde, um arquipélago – ter sido apenas em países, tal como o Brasil, que falam português. Estão a investigar se as viagens entre os Brasil e os países africanos de língua portuguesa poderão ter fomentado a disseminação desta estirpe.

Em Angola, tem sido difícil estabelecer uma ligação directa ente os casos de microcefalia com o Zika devido ao acesso limitado a testes avançados que podem confirmar a infecção mesmo depois de a fase aguda já ter passado.

Quatro profissionais da saúde que trabalharam com o Ministério da Saúde de Angola dizem que também havia pouca vontade política para investigar a epidemia de Zika da parte de um Governo que já tem de lidar com um surto mortal de malária, bem como de cólera e ainda a ameaça do vírus do ébola se espalhar a partir da República Democrática do Congo. Falando sob anonimato devido à sensibilidade do assunto, esses responsáveis de saúde acrescentam que havia o receio de que um surto exigisse ao Governo o estabelecimento de programas onerosos para os bebés com microcefalia.

Os bebés

No Brasil, o epicentro do maior e mais grave surto de Zika até agora, o vírus praticamente desapareceu neste momento. A taxa elevada de infecções há dois anos deixou grande parte da população imune, tornado difícil a disseminação da doença. “A salvação, se é que há salvação, é que temos imunidade de grupo”, refere Albert Ko, especialista em doenças tropicais da Universidade de Yale, nos EUA. Não se sabe se a imunidade à estirpe africana confere imunidade à estirpe asiática.

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Uma brasileira, na sua casa em Olinda, Brasil, com a filha de quatro meses que nasceu com microcefalia UESLEI MARCELINO/Reuters

Muitas famílias ainda estão a lutar contra a doença. Jackeline Vieira de Souza, de 28 anos, que vive no estado brasileiro de Pernambuco, descreve uma rotina diária esgotante com o seu filho Daniel, que nasceu em 2015 com microcefalia. “O meu dia-a-dia é acordar e cuidar dele. Terapias e médicos.”

As esperanças para Daniel são modestas. “Não tenho esperança de o ver andar, correr. Apenas sonho em que pelo menos ele consiga comer melhor, respirar melhor.”

Em Angola, o caminho para estas mães está apenas no início. Não há nenhum programa de saúde para ajudar estas crianças, que precisam de fisioterapia e outros cuidados regulares. As famílias são frequentemente referenciadas para o Centro Neurocirúrgico e Tratamento da Hidrocefalia em Luanda, apesar de o centro ter falta de fundos para lidar com o problema. As famílias têm de pagar as consultas, que custam entre sete e 21 dólares (seis e 18 euros), o que ultrapassa largamente os meios de muitos num país onde 30% da população vive com menos de um dólar (87 cêntimos de euro) por dia. “A maioria vem uma vez e nunca mais volta”, disse a fisioterapeuta Adelina Martins. “Não têm posses para continuarem a vir.”

Recentemente, Luísa Alberto, de 20 anos, esperou com o seu bebé de três meses para ser consultada por um médico, juntamente com uma dezena de outras mães sentadas num corredor estreito por baixo de um retrato do Presidente João Lourenço. O pai do bebé recusou-se a aceitá-lo, por isso Luísa Alberto tem de cuidar sozinha do seu primeiro filho enquanto tenta acabar a escola. A criança consegue alimentar-se, mas está a desenvolver-se mais lentamente do que o normal, contou Luísa Alberto. “É difícil.”