História de um homem que foi feliz

Um romance atraiçoado pela sua eficácia romanesca.

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Sendo um escritor discreto, Jean-Paul Dubois é também um escritor fiável e com um gosto eficaz pelo romanesco DANIEL ROCHA

A história de um homem que foi feliz. Poderia resumir-se assim o romance mais recente de Jean-Paul Dubois (Toulouse, 1950). E estaria certo o resumo — pois, como sabemos, a felicidade é sempre coisa do passado —, mas não faríamos justiça à escrita do autor. Diríamos, então, que se trata da história de um homem que foi feliz durante quatro anos, mas a descrição continuaria insuficiente. E avançaríamos um passo mais: A Sucessão (originalmente publicado em 2016 e finalista do Prémio Goncourt desse ano) é a história de um homem que foi feliz em Miami — cidade onde não faltam pessoas “que se vão embora sem avisar ninguém”, como, aliás, em todas as cidades — “de meados de novembro de 1983 a 20 de dezembro de 1987”. O uso de tamanha exactidão em matéria tão volátil quanto é a felicidade tem o efeito paradoxal, certamente pretendido, de nos causar estranheza e alguma inquietude, mas a ancoragem da acção em datas e lugares precisos é, justamente, uma característica da prosa de Dubois. Tal como a exactidão vocabular — verificável, por exemplo, na descrição dos prazeres da pelota basca e dos procedimentos técnicos da eutanásia —, condição que lhe dá uma espécie de subtil e eficaz confiabilidade. Falta dizer, completando a sinopse, que o homem que foi feliz se chama Paul (como quase todos os protagonistas de Dubois) e que também nasceu em França, em Toulouse (epicentro da vida e da obra do autor).

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A história de um homem que foi feliz. Poderia resumir-se assim o romance mais recente de Jean-Paul Dubois (Toulouse, 1950). E estaria certo o resumo — pois, como sabemos, a felicidade é sempre coisa do passado —, mas não faríamos justiça à escrita do autor. Diríamos, então, que se trata da história de um homem que foi feliz durante quatro anos, mas a descrição continuaria insuficiente. E avançaríamos um passo mais: A Sucessão (originalmente publicado em 2016 e finalista do Prémio Goncourt desse ano) é a história de um homem que foi feliz em Miami — cidade onde não faltam pessoas “que se vão embora sem avisar ninguém”, como, aliás, em todas as cidades — “de meados de novembro de 1983 a 20 de dezembro de 1987”. O uso de tamanha exactidão em matéria tão volátil quanto é a felicidade tem o efeito paradoxal, certamente pretendido, de nos causar estranheza e alguma inquietude, mas a ancoragem da acção em datas e lugares precisos é, justamente, uma característica da prosa de Dubois. Tal como a exactidão vocabular — verificável, por exemplo, na descrição dos prazeres da pelota basca e dos procedimentos técnicos da eutanásia —, condição que lhe dá uma espécie de subtil e eficaz confiabilidade. Falta dizer, completando a sinopse, que o homem que foi feliz se chama Paul (como quase todos os protagonistas de Dubois) e que também nasceu em França, em Toulouse (epicentro da vida e da obra do autor).

A felicidade, infelizmente, é matéria pouco romanesca. Deve ser por causa disso que o autor, iniciada classicamnente a narração in media res — com a descrição abreviada daqueles anos durante os quais o protagonista-narrador, médico refractário, foi jogador profissional de pelota basca na Florida —, rapidamente avança para trás e para a frente no tempo, instalando-se desconfortavelmente (e a nós também) em “toda essa esplêndida mediocridade que compõe um vida” (p. 32). A queda de Paul é anunciada pela chegada a Miami de duas fotografias enviadas por seu pai, médico em Toulouse, “após quatro anos de silêncio, de ignorância e de indiferença”, e pelo anúncio protocolar do suicídio teatral deste. Os dois acontecimentos são praticamente simultâneos e precipitam a expressão de toda a estranheza que a sua família de suicidas — “aquela gente, incapaz de viver, de suportar o seu próprio peso na terra”, maus actores que só “sabiam morrer até mais não” — acorda no protagonista e, em particular, do ódio que este dedica ao seu progenitor, sempre com “o seu latim de cozinha” e “com a boca cheia de frações contínuas e de expoentes e, porém, sem uma palavra para o seu filho”. Convencido de que, “graças à sua grande sabedoria, os tetos nunca caem duas vezes no mesmo sítio”, Paul está longe de prever o que irá descobrir quando regressa a Toulouse, para o funeral do pai.

Dez anos depois de Não Brinque, Senhor Tanner, o autor de Uma Vida Francesa (romance editado pela Asa em 2005) volta a ser publicado em Portugal. E ainda bem, porque, sendo um escritor discreto, Jean-Paul Dubois é também um escritor fiável e com um gosto eficaz pelo romanesco. Talvez seja, aliás, esta eficácia apurada que, tornando o final deste romance previsível e até mesmo inevitável, acaba por enfraquecê-lo. Já quase no final do livro, Dubois abre um parágrafo com algumas frases que poderiam ter sido um bom incipit, caso a narração fosse uma só analepse: “Eu tinha 44 anos, a vida social de uma mesa de um só pé, uma vida amorosa que sofria da síndrome de Guillain-Barré, e praticava com aplicação e rigor uma profissão estimável mas para a qual eu não era feito. Ia ao cinema, ouvia música, lia revistas de atividades náuticas e seguia de tempos a tempos a atualidade do râguebi. Era parecido com a maioria dos meus vizinhos. Com a pequena diferença de eles nunca terem precisado de tocar num frasco de pancurónio.” (p.194) Por esta altura, porém, o nosso anti-herói existencialista, que poderia ter saído de um quadro de Edward Hopper, já cruzou diversas vezes o Atlântico entre Miami, Toulouse e o País Basco, e, submetido à “guilhotina dos dias”, já descobriu que não é possível “corromper o destino”. Sobretudo, Paul já aceitou suceder ao pai e prepara-se agora para honrar a sua herança, “aquela incorrigível propensão familiar a abandonar o palco antes do final da peça”.