Isto aqui não é um título

Onde Está o Casaco?, uma obra de Ana Jotta, Cyriaque Villemaux e João dos Santos Martins apresentada em estreia absoluta no Circular — Festival de Artes Performativas de Vila do Conde, é uma sátira mordaz sobre a iniquidade das coisas.

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Margarida Ribeiro

Numa célebre conferência intitulada O acto criativo (1957), Marcel Duchamp comentou: “O que a arte é na realidade é esse elo perdido, não os elos que existem. A arte não é o que se vê, a arte é a lacuna." Essa falha ou lacuna, esse espaço não-retinal e infrafino é o que estende o limite das possibilidades. E quando quase tudo se desenrola na margem de incerteza que separa o signo do significado, que separa as palavras das coisas (como nos mostrou Foucault), ou as imagens da linguagem (como René Magritte ilustrou na célebre pintura La Trahison des Images, de 1929, mais conhecida por “Ceci n’est pas une pipe”, e que inspira o título desta reflexão), essa margem é generativa, e o humor e a ironia resultantes são germinais.

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Numa célebre conferência intitulada O acto criativo (1957), Marcel Duchamp comentou: “O que a arte é na realidade é esse elo perdido, não os elos que existem. A arte não é o que se vê, a arte é a lacuna." Essa falha ou lacuna, esse espaço não-retinal e infrafino é o que estende o limite das possibilidades. E quando quase tudo se desenrola na margem de incerteza que separa o signo do significado, que separa as palavras das coisas (como nos mostrou Foucault), ou as imagens da linguagem (como René Magritte ilustrou na célebre pintura La Trahison des Images, de 1929, mais conhecida por “Ceci n’est pas une pipe”, e que inspira o título desta reflexão), essa margem é generativa, e o humor e a ironia resultantes são germinais.

Em Onde Está o Casaco? (2018), uma obra de Ana Jotta, Cyriaque Villemaux  e João dos Santos Martins apresentada em estreia absoluta no Circular — Festival de Artes Performativas de Vila do Conde, o título propõe, desde logo, esse jogo incongruente. O casaco que não está lá é, naturalmente, o que menos importa. A pergunta evoca, por um lado, a desconexão entre discurso e evento, expondo a arbitrariedade da linguagem, tão presente na admirável e desconcertante prática artística de Ana Jotta. Por outro lado, remete para aquele cabide vazio que pontuava o cenário da coreografia Autointitulado (2015), de João dos Santos Martins e de Cyriaque, uma citação ao ready-made duchampiano. Autointitulado explorava também a potencialidade da prática do ensaio — essa prática do erro e da experimentação, a tal margem generativa — para a composição coreográfica. Assim, este título remetendo para o precedente despoleta aqui a linha do absurdo e do heteróclito que irá pautar toda esta obra, verdadeiramente genial e plena de humor.

É, então, num pequeno teatro em madeira, com cortinas feitas de lençol branco e perante um holofote central movido manualmente, que se dá o primeiro acto de aparição: João e Cyriaque, com fatos de ballet inteiros, da cor da pele, irrompem num pas de deux hilariante, saltando e cantando um excerto de Notte e giorno faticar, a primeira ária da ópera Don Giovanni (1787), de Mozart, que conta a história do criado, Leporello, cansado da sua vida miserável. Finda esta primeira cena, duas luvas brancas fazem correr as cortinas, deixando adivinhar Ana Jotta, a maquinista de cena, e o palco com o seu cenário móvel em pano de fundo, desenhado e movimentado pela artista.

E o público é transportado, como se numa viagem no tempo se tratasse, para um bailado dadaísta do início do séc. XX, onde se apresentam breves cenas dançadas e cantadas sem uma narrativa linear, nas quais os bailarinos surgem como referentes neutros (confirmando os figurinos), aos quais se vão colando diversas figuras sem precedente nem permanência.

Os lençóis brancos complementam os figurinos, criando diversas formas. Surgem figuras infantis, formas e movimentos que remetem para a animalidade, uma figura com duas cabeças, entre outros. Os excertos musicais de diversas obras que pontuam a montagem coreográfica são cantados pelos bailarinos em várias línguas (francês. russo e alemão), e acompanhados pela flauta, tambor, e por um piano de criança. Convocam-se marchas, soldados, o absurdo da guerra, canções infantis, como La rébellion do filme Zero em Comportamento (1933), de Jean Vigo, com a sua visão anarquista da infância, ou ainda excertos de A Ópera dos Três Vinténs (1928), de Bertolt Brecht, uma crítica socialista ao capitalismo. Coreografias e canções virtuosas que evocam uma profusão de linguagens são ainda pontuadas pela acções subtis e plenas de humor de Ana Jotta, cujas luvas brancas, surgindo por detrás das cortinas, interpelam os bailarinos com questões pueris: “Se fosses um animal, que animal serias?”.

Esta montagem dadaísta combina a ingenuidade infantil, o absurdo e a arbitrariedade do sentido com uma sátira mordaz e incisiva sobre o desconcerto e a iniquidade das coisas, tão contemporâneos. Uma obra brilhante!

 
Crítica corrigida às 14h 52: relativamente à autoria da peça  Autointitulado e às línguas em que são interpretadas as canções