Cuidadoras que dão o braço umas às outras

Em Gondomar, o programa de apoio a cuidadores informais de pessoas com doença de Alzheimer inclui um grupo de ajuda mútua. Quarta de uma série de quatro reportagens sobre estratégias para envelhecer.

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Naquela manhã, o marido de Conceição Cunha recusou-se a desfazer a barba. Ela não insistiu. Às vezes, ele recusa-se a tomar banho ou a desfazer a barba e ela deixa-o estar. “Já não é bem o meu marido que ali está. É como se fosse uma criança. Faz birras. Quando diz não, não adianta.”

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Naquela manhã, o marido de Conceição Cunha recusou-se a desfazer a barba. Ela não insistiu. Às vezes, ele recusa-se a tomar banho ou a desfazer a barba e ela deixa-o estar. “Já não é bem o meu marido que ali está. É como se fosse uma criança. Faz birras. Quando diz não, não adianta.”

É a primeira a chegar, Conceição. Todos os meses, há um encontro do grupo de ajuda mútua, que faz parte do Projecto de Apoio ao Cuidador Informal do Município de Gondomar “Mais Cuidar”. Fazem sempre qualquer coisa para escapar à pesada rotina – podem ver um filme, dar um passeio, fazer um piquenique, ir a um museu. Desta vez, vão almoçar e caminhar um pouco à beira rio.

Conceição recebe quem vai chegando – as técnicas, Joana Silva e Antónia Ferreira, e os outros cuidadores, todos do sexo feminino menos um, que com a mulher toma conta da mãe. Ainda aguardam pelas atrasadas antes de entram no autocarro preto com filigrana pintada a dourado.

Para já, ninguém parece vestir tão bem a pele de cuidadora como ela. Tem 52 anos, é auxiliar de acção médica no Hospital Geral de Santo António e está casada com um homem a quem a doença de Alzheimer apareceu invulgarmente cedo. “Foi diagnosticada há oito anos. Ele tinha 47 anos. Foi reformado aos 49…”

A necessidade de acompanhar os cuidadores informais foi diagnosticada pela rede social, sublinha Cláudia Vieira, adjunta da presidência da Câmara de Gondomar. O aumento da esperança média de vida traz novos desafios, incluindo um aumento do número de pessoas com demência. Há que cuidar de quem cuida, não vá o desgaste levar à depressão ou levar à negligência, ao mau trato ou ao abandono.

O CASTIIS - Centro de Assistência Social à Terceira Idade e Infância de Sânguedo tinha desenvolvido um projecto inovador, o “Cuidar de Quem Cuida”, que fora aplaudido como boa prática. E, com financiamento do Programa Cidadania Activa, em Portugal gerido pela Fundação Calouste Gulbenkian, estava a tratar de disseminá-la na Área Metropolitana do Porto. 

No princípio do verão de 2015, a câmara e 17 parceiros locais assinaram um acordo de cooperação com o CASTIIS. Com o contributo das várias entidades, criaram uma bolsa de 30 técnicos que receberam formação para replicar o programa psicoeducativo para cuidadores informais de pessoas com doença de Alzheimer.

Não ficaram por aí. Criaram três pontos (um na câmara e dois nos centros de saúde de Foz do Sousa e Rio Tinto) para informar, orientar, receber e encaminhar cuidadores. Havendo oito cuidadores interessados, organizam um programa psicoeducativo. Feitas as dez sessões de formação, desafiam os cuidadores a juntar-se ao grupo de ajuda mútua dinamizado pelos técnicos.

 “Isto não é um projecto de quantidade, é um projecto de qualidade”, diz Cláudia Vieira. Para já, 75 cuidadores frequentaram o programa.

Conceição frequentou a primeira edição. “Inscrevi-me na Alzheimer Portugal. Soube, através da associação, que iam começar estes grupos e fui à câmara. Procuro tudo o que me dê apoio.” Não quer ceder ao cansaço, mergulhar numa depressão. “Neste momento, estou numa psicóloga. Preciso de estratégias, de ferramentas para andar com a cabeça ao alto e seguir em frente.”

Há uma psicóloga investida da missão de garantir que todos os cuidadores percebem bem o que que é a doença de Alzheimer, como progride, como afecta a memória, o raciocínio, as competências sociais, a própria personalidade. Há uma enfermeira que explica como hidratar, como medicar, como evitar a inversão dos padrões de sono. Há uma fisioterapeuta que fala sobre as melhores posições para sentar, deitar, transferir, exercitar. E que dá dicas para reorganizar a casa. E uma jurista que discorre sobre o regime de incapacidades (que vai ser substituído em Fevereiro pelo regime do maior acompanhado). E uma assistente social que fala nos apoios que existem.

O marido de Conceição está a desaparecer de dia para dia. “Há muitas coisas de que se esquece. Falamos com ele, passado um bocado já não se lembra. Tem muitas mudanças de humor. Tem alturas em que está no mundo dele e ignora tudo e todos e tem alturas em está no nosso mundo e percebe tudo.”

Ela tem de lidar com esta sensação de perda continuada ao mesmo tempo que lhe presta cuidados. “É uma luta perdida”, suspira. “Vai-se vivendo. Antes, vivia o dia-a-dia. Agora, vivo hora a hora.” Nem quando está a trabalhar, desliga. “Ele liga-me várias vezes durante o dia. Se não ligar, eu ligo.”

Ali, no grupo, sente-se bem. “Todas passamos pelas mesmas situações, todas temos os mesmos problemas diários. Acabamos por desabafar umas com as outras, por partilhar as nossas experiências e as nossas estratégias. Algumas já perderam os familiares mas estão aqui…”

O grande conselho de Conceição é “paciência”. “Acima de tudo, é preciso ter muita paciência”, diz. “É preciso não valorizar muito do que se ouve. Muita coisa que ele diz não é do coração. Insultos, palavrões. Às vezes, é preciso respirar fundo e contar até 50 porque até dez já não chega.” Além de paciência, receita sentido de humor. “Ajuda brincar um bocadinho com a situação.”

Dias antes, num momento de maior lucidez, o marido disse-lhe que se sentia um fardo, que melhor seria levá-lo para um lar. “Quando era nova, aturei-te; agora que estou velha não me queres aturar?”, reagiu ela. Ele ficou desconsertado. “Não me vais pôr num lar?”, perguntou. “Não prometeste que era até ao fim?”, retorquiu ela. Ele riu-se. E ela afastou-se para chorar em silêncio, fora da sua vista.

Foi muito feliz com ele. Já com a doença diagnosticada, celebraram 25 anos de casamento recasando-se e indo de lua-de-mel à ilha da Madeira. A memória dos anos felizes ajuda-a a aguentar. E apoio das filhas, ambas farmacêuticas.

Pode lembrar-se de estratégias que não passam pela cabeça dos médicos assistentes. “No ano passado, ela caiu, partiu a anca, teve de pôr uma prótese. O médico disse que não ia andar mais. Ao fim de um mês estava a andar.” O que aconteceu? “Arranjámos um estratagema”, diz, soltando uma gargalhada. “Arranjamos-lhe uma cadelinha. É uma motivação para ele contrariar a doença. A doença vai por um lado, vamos por outro”, prossegue. “Ele tem umas tarefas diárias. Vai comprar o pão, tomar café, passear a cadelinha. Arrasta os pés, mas anda, anda com uma bengala…”

O grupo chega ao restaurante num alarido. Divertem-se a aprender a fazer pizzas com o pizzaiolo. Entretanto, vão falando com quem está mais próximo. Há uma mulher que cuida da mãe e que tem o marido emigrado em França. Ninguém se ouve tanto como ela durante o almoço.

Findo o almoço, o grupo faz uma pequena caminhada à beira rio e é surpreendida por uma terapeuta do riso, que as aguarda para uma pequena sessão. Explode num choro uma mulher que cuida do marido, que a sujeitou a uma vida de maus tratos, e se aflige com um filho, obsessivo compulsivo. Regressam à camioneta mais relaxadas do que quando saíram. Caminham lado a lado. Algumas de braço dado.

Ana Maria Casais, de 74 anos, fica atrás. Anda com mais vagar. Está a recuperar de um cancro. Cuida da mãe, de 96 anos, e da velha empregada, de 82.

“A minha empregada está com a minha família há 62 anos, não vou dispensá-la”, conta. “Ainda me educou, ainda me ensinou a vida de casa. Ela era empregada da minha mãe. Quando eu mudei para uma casa minha, a minha mãe achou que ela me fazia mais falta a mim, que tinha dois filhos, do que ela, que vivia só com o meu pai. Ela criou os meus filhos. Eu e o meu marido trabalhávamos fora. Tínhamos um estabelecimento de venda de materiais de construção. Era uma casa muito grande.”

Maria Olívia ainda ajuda. “Ela já não é capaz de destinar uma refeição. Ela quer que eu lhe diga o que fazer. Eu às vezes digo-lhe: ‘Não, Maria Olívia.’ E ela ri-se.” Dizendo-lhe o que é para fazer, faz. “Ela não põe sal duas vezes. Ela tem muito a preocupação de provar.” Ana Maria diz isto e sorri. É que, no início, Maria Olívia enervava-se com a mãe dela. Não percebia que as suas alterações de comportamento se explicavam com a doença. “Ninguém sabe para onde vai…”

Achava que ia aprender pouco aqui, mas animava-a a ideia de partilhar experiências. E o convívio. “É a tarde mais bem vivida do mês todo”, assegura. “Estou muito bem na minha casa com a minha mãe e com a Maria Olívia, mas estou melhor com elas, porque estou alheada do meu ambiente”, admite. “O convívio é sempre muito agradável. Há danças, há riso, há filmes, ou partilha de fotografias. E, às vezes, até há comes e bebes. São as sessões que eu aprecio mais!”

E se quem cuida de outros doentes pudesse dizer o mesmo? Reajustado o programa psicoeducativo, a Câmara de Gondomar e os seus parceiros estão já a criar uma resposta para cuidadores de acamados (não dementes) e outra para cuidadores de pessoas com doença mental (de qualquer idade). “Estamos a trabalhar para ter esses programas validados em 2019”, afiança Cláudia Vieira. “Ainda no próximo ano, devemos estar em condições de operacionalizar estes programas.”