"A senhora dos fósforos" concretizou o sonho do pai

Milhares de caixas de fósforos, entre 40 mil a 50 mil, enchem as paredes do convento de São Francisco em Tomar. Aquiles Mota Lima começou a colecção e a filha seguiu-lhe os passos.

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Maria Helena Mota Lima tem na ponta da língua a data da coroação da Rainha Isabel II, mas não necessariamente devido a um interesse particular na monarquia britânica. Em 1953, o seu pai, Aquiles de Mota Lima, viajou até Inglaterra para testemunhar o momento histórico. No navio, conheceu uma filumenista – ou seja, uma coleccionadora de fósforos – americana que o iniciou na actividade. Na volta, depois de passar por outras cidades europeias, chegaria a Tomar já com mais de cem caixas de fósforos.

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Maria Helena Mota Lima tem na ponta da língua a data da coroação da Rainha Isabel II, mas não necessariamente devido a um interesse particular na monarquia britânica. Em 1953, o seu pai, Aquiles de Mota Lima, viajou até Inglaterra para testemunhar o momento histórico. No navio, conheceu uma filumenista – ou seja, uma coleccionadora de fósforos – americana que o iniciou na actividade. Na volta, depois de passar por outras cidades europeias, chegaria a Tomar já com mais de cem caixas de fósforos.

Ao longo da vida, Aquiles de Mota Lima coleccionou milhares de caixas de fósforos, carteiras de fósforos e etiquetas. Maria Helena seguiu ao seu lado: era “angariadora de fundos”, brinca. Hoje com 91 anos, serve como directora honorária do museu que se ergueu em Tomar, no Convento de São Francisco, para acolher e expor a colecção. Aquiles de Mota Lima doou-a à câmara em 1980 e morreu em 1984. “Tenho pena é que ele não a tenha visto ali”, lamenta Maria Helena. Não sabe ao certo o número de exemplares, mas estima que esteja entre os 40 mil e 50 mil, provenientes de mais de uma centena de países.

As caixas ocupam sete salas do convento que outrora serviram repartições da tropa. As estantes forram as paredes e no centro de cada sala outros móveis altos completam a divisão. Juntam-se às dezenas os conjuntos de caixas dos mais variados temas. Animais, cães, gatos, personagens da Disney, flores, plantas, abecedários, caras famosas, monumentos, equipas de futebol, paisagens, ilustrações de pratos típicos, fotografias de comida, sinais de trânsito, moinhos de vento e abecedários ilustrados com animais são apenas alguns exemplos. “O que interessava sempre era ter a colecção completa”, explica Maria Helena.

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Nuno Ferreira Santos

Ao longe, as imagens em miniatura produzem os seus próprios padrões. Por vezes, as caixas estão dispostas de forma alternada, ora na vertical, ora na horizontal, criando pontos de interesse. É muita informação visual para assimilar-se só de passagem.

A última sala é a maior e a que é dedicada às caixas portuguesas. Maria Helena tem-nas contadas: somam 8500. Uma das mesas exibe caixas de diferentes partidos e candidatos políticos – as de Freitas do Amaral, Adriano Moreira e pelo menos mais dois políticos do pós-25 de Abril estão assinadas. Alguns exemplares são um pouco mais aleatórios: uma das caixas, por exemplo, alerta para o facto de que “Os ratos estragam alimentos” e outra promete uma recompensa de até 5 milhões de dólares pelo paradeiro de Osama bin Laden. É um exemplar que capta o olho de muitos visitantes, garante Maria Helena.

A tomarense afirma, com alguma humildade, que não se trata de um museu, mas antes de uma “colecção musicável”. Em 2018, o Museu dos Fósforos recebeu cerca de 13800 visitas e, neste ano, até ao final do mês de Julho, foram contabilizados já mais de nove mil entradas, segundo dados do Posto de Turismo de Tomar.

Não se chega a uma colecção de tamanha dimensão sem persistência e alguma estratégia. Quando Aquiles começou a coleccionar, colocava anúncios no jornal para informar que comprava caixas de fósforos. “Havia muitas pessoas que tinham meia dúzia de caixas e vendiam”, recorda a filha. Foi assim que conseguiu recolher vários exemplares anteriores a 1894. “Como elas eram bonitas, as senhoras antigamente guardavam-nas no sótão”.

Além disso, Aquiles de Mota Lima trocava caixas de fósforos com filumenistas de outros países. “Enviava 20 caixas portuguesas” para países como a Alemanha, Bélgica, Jugoslávia e França, exemplifica Maria Helena, e de volta recebia o mesmo número. Para ter fácil acesso às caixas que eram produzidas pelas fábricas portuguesas – que entretanto deixaram de existir –, fez um contrato com o dono de uma tabacaria. “Tudo quanto ele recebia, tirava os fósforos e mandava ao meu pai”, conta Maria Helena. Até uma correspondente (emigrante portuguesa) em Londres chegou a ter. “O meu pai abriu uma conta de banco para ela e ela tinha a preocupação de comprar caixas”.

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Por duas vezes, ofereceu à filha e à mulher, Maria Eugénia, uma viagem a Madrid com o propósito único de adquirirem caixas. A família viajava com alguma frequência, dentro e fora de Portugal, e tornou-se hábito regressarem com caixas de fósforos de onde as tinham encontrado. Maria Helena fazia-o com especial dedicação: “Quando via uma tabacaria dava uma corrida para ninguém esperar por mim e consegui trazer tantas…”. “Antigamente era fácil arranjar caixas porque as lojas todas tinham muitas colecções. Em Espanha era uma beleza”, descreve. Em Londres, por exemplo, recorda-se de entrar nas lojas que se mantinham abertas noite dentro, onde se vendiam “caixas muito compridas”. “À noite, no hotel, punha tudo em cima da cama para ver as que faltavam”.

Corria o risco de os fósforos serem despejados das caixas à fronteira, mas teve sempre sorte. “A mim nunca me fizeram isso, por isso as caixas têm os fósforos originais”. Uma das particularidades da colecção de Aquiles de Mota Lima é precisamente a forma como estão conservadas, em inteiro e com os fósforos originais. Há que ter espaço para isso pelo que grande parte dos filumenistas guardam-nas espalmadas ou então coleccionam apenas as etiquetas.

José Santos Silva, tesoureiro da Associação Portuguesa de Filumenismo (APF), supõe que existam outras colecções de quantidades equiparáveis, mas apenas espalmadas. Conta ainda que um dos ex-presidentes da APF, Fernando Valente, chegou a ter uma colecção com fósforos semelhante “em quantidade” à de Aquiles de Mota Lima. “Estava a criar um museu num dos pisos da casa, vivia num casarão muito grande, mas não chegou a abrir porque entretanto faleceu. [A colecção] foi adquirida por um coleccionador e sei que foi-se vendendo aos poucos”, relata.

Criada em 1972, a APF veio dar um espaço mais formal às tertúlias que entretanto já se reuniam pelos cafés, no Porto. O que as atraia as pessoas para o filumenismo? “A diversidade, a cor, a facilidade com que arranjavam [caixas] – porque era fácil andar aí pelas tabacarias”, responde José Santos Silva. Apanhavam-se caixas do chão. Como todo o coleccionismo, era uma forma de “ocupar tempos livros”, aponta ainda.

Apesar do decrescente número de sócios, a APF continua a ter um espólio notável de caixas portuguesas. Rondam os dois milhões, designa o responsável, e estão guardadas na sede da associação, no Porto. “Está tudo bem organizado e catalogado. A associação tem catálogos de tudo quanto existe”, regozija. Por cada exemplar que as duas fábricas portuguesas (Fosforeira Portuguesa e Sociedade Nacional de Fósforos e Isca) produziam, a associação comprava cerca de 500, que depois vendia aos sócios. O número das encomendas reduziu para 350, depois 200 e eventualmente zero, com o encerramento das fábricas.

Com 69 anos, José Santos Silva afirma ser um dos sócios mais novos. Os jovens não têm interesse em coleccionar estes objectos, aponta. Ainda assim, este ano inscreveu três novos sócios: “um senhor que quer coisas ligadas à magia; um médico reformado, que ia juntando ao longo da vida e agora quer organizar a colecção, e um inglês que enviou um email a pedir para ser sócio para poder adquirir peças de Portugal”.

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Algumas publicações antigas da Associação Portuguesa de Filumenismo

Actualmente, a APF continua a publicar semestralmente um boletim, onde são partilhadas histórias e notícias sobre o filumenismo, e uma revista (Montra de Colecções), a partir da qual os sócios podem fazem encomendas. Duas vezes por ano, Maria Helena passa a revista a pente fino, em busca das caixas que ainda lhe faltam. É assim que mantém viva a colecção Aquiles de Mota Lima.

Museu desde 1989

O Museu dos Fósforos – aberto ao público em 1989 – concretizou-se do esforço e vontade de Maria Helena. “Foram meses a arrumar aquilo tudo sozinha”, conta. Algumas amigas ainda ofereceram ajuda, mas esta preferiu não delegar tarefas e assegurar que tudo era feito com deve ser. “Não sou de companhias”, revela.

Costumava estar no museu todos os dias, mas tem vindo a visitar o espaço com menor regularidade. Alegra-se, ainda assim, ao constatar que uma das jovens que toma conta do espaço “tomou gosto por aquilo”.

Maria Helena montou a exposição à imagem daquela que o pai já tinha concebido, num anexo que construiu ao lado da casa de família. Os armários que agora compõem as divisões do convento são os mesmos que forravam a sala de 17 metros de comprimento e faziam uma espécie de parede falsa no meio. “O meu pai gostava de receber as pessoas e mostrar ao pormenor uma caixa ou outra”, recorda. E “as pessoas ficavam muito admiradas” com a colecção, garante.

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Já na juventude, Aquiles de Mota Lima mostrava os seus talentos em público. Natural de Tomar, era um de três irmãos – o pai, Albino de Lima Simões, chegou a ser presidente da câmara. Cada irmão tocava um instrumento (Aquiles o violoncelo) e juntavam-se com mais alguns músicos para dar concertos na casa dos pais (avós de Maria Helena), situada na rua principal de Tomar. “No Verão, tinham as janelas abertas e as pessoas na rua à noite vinham ouvir. Era do tempo em que não havia luz eléctrica”.

Mais tarde formou um grupo coral, o Orfeão Tomarense. “Era muito grande. O meu pai fazia as músicas. Outro nosso parente fazia a letra. Era só a baterem no excesso de finanças — tiravam o dinheiro às pessoas com muitos impostos”, descreve hoje Maria Helena. “Eram muito disputados os lugares para os espectáculos. Era assim quando a terra era mais pequena.”

O pai era bancário de profissão — “não era banqueiro”, clarifica — e acabou por vender a sua casa bancária. Esteve na fundação de dois jornais regionais: primeiro o De Tomar, que durou apenas uns anos, e mais tarde O Templário, ainda hoje publicado como semanário. Com Maria Eugénia, também de Tomar, teve dois filhos.

Pai e filha partilharam a paixão pelas caixas de fósforos. E Maria Helena ainda coleccionou "saquinhos de açúcar" e sabonetes de hotel. Percorreu dezenas de cafés e lojas e, por vezes, ganhava fama: “Olha, é a senhora dos fósforos", diziam-lhe.