O tempo que faz

O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, começa com uma descrição meteorológica: “Uma zona de baixas pressões sobre o Atlântico deslocava-se para leste, em direcção a um anticiclone situado sobre a Rússia; não denunciava ainda qualquer tendência para o evitar, e dirigia-se para norte. Os isotermos e os isóteros cumpriam as suas obrigações. A temperatura do ar mostrava uma relação normal com a temperatura média anual (...). Para usar uma expressão que, apesar de um tanto antiquada, serve na perfeição para dar a realidade dos factos: era um belo dia de Agosto do ano de 1913 (tradução de João Barrento, Dom Quixote). Um ano depois, começava a Primeira Guerra Mundial. A placidez meteorológica desse belo dia da Agosto de 1913 projecta-se ironicamente numa anunciada catástrofe histórica, com o epicentro situado em Viena, capital da Cacânia, A alegoria meteorológica de Musil supõe um desencontro, uma não-coincidência, entre o tempo histórico e o tempo meteorológico, entre a história humana e a história natural. O “tempo que faz” é, assim, de uma indiferença soberana em relação ao tempo que o homem faz. Cerca de um ano depois, a 2 de Agosto de 1914, Kafka, no seu diário, deixaria um outro registo - muito pessoal, mas nada estranho às suas fábulas para metafísicos - da divergência entre a tempestade histórica e o tempo convidativo do Verão mitteleuropeu: “A Alemanha declarou guerra à Rússia, Á tarde, piscina”. O que é que aconteceu entretanto às “fábulas” meteorológicas?  Muito simplesmente, a discordância de tempos (ambientais vs humanos) já não funciona e a distinção entre  história humana e história natural entrou em colapso. O conceito de Antropoceno, que coloca o homem como o agente determinante de uma nova era geológica, supõe essa relação catastrófica, onde já não há lugar para ironias. Por isso, a tagarelice muito convivial e socialmente codificada em torno do “tempo que faz”, a conversa de rua serena e cordial sobre a cor do dia e os caprichos do sol e da chuva, é uma coisa do passado. Agora, o que temos é a meteorologia e as suas consequências fornecidas a toda a hora como uma catástrofe permanente ou um aviso de prevenção das catástrofes. É verdade que as formas actuais de prevenção revelam uma tendência paranóica, mas está instalada a ideia de que o clima não é apenas caprichoso e, por isso, somos bombardeados diariamente com avisos de anomalias, excentricidades, recordes, fenómenos meteorológicos nunca vistos ou nunca antes medidos. A obsessão pela medida, pelo rating, pelos números, a passagem do analógico ao digital, alteraram completamente as nossas representações imaginárias. Para definir a “essência da técnica”, Heidegger deu uma vez este exemplo: o homem moderno não pode ver um rio sem o transformar imediatamente em energia (caducou o tempo em que Hölderlin escrevia um hino ao Reno). Assim acontece hoje com o clima e com a meteorologia: um belo dia de Julho é um anúncio de canícula, um Verão português ameno e um Verão escandinavo inclemente é o mundo ao contrário. A meteorologia tornou-se uma semiótica alucinada que lê sinais e mensagens cheias de significado catastrófico em todo o lado, em todos os momentos, em todos os fenómenos. Por trás, há sempre uma vontade de controle ou, pelo menos, a ideia de que nos podemos prevenir contra o que resta de incontrolável. E a prevenção paranóica acaba por produzir parte do mal que quer evitar (como acontece com a destruição levada a cabo pela “limpeza” das florestas). Certo é que a informação sobre a meteorologia nos é fornecida actualmente como o boletim de uma guerra em curso.

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O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, começa com uma descrição meteorológica: “Uma zona de baixas pressões sobre o Atlântico deslocava-se para leste, em direcção a um anticiclone situado sobre a Rússia; não denunciava ainda qualquer tendência para o evitar, e dirigia-se para norte. Os isotermos e os isóteros cumpriam as suas obrigações. A temperatura do ar mostrava uma relação normal com a temperatura média anual (...). Para usar uma expressão que, apesar de um tanto antiquada, serve na perfeição para dar a realidade dos factos: era um belo dia de Agosto do ano de 1913 (tradução de João Barrento, Dom Quixote). Um ano depois, começava a Primeira Guerra Mundial. A placidez meteorológica desse belo dia da Agosto de 1913 projecta-se ironicamente numa anunciada catástrofe histórica, com o epicentro situado em Viena, capital da Cacânia, A alegoria meteorológica de Musil supõe um desencontro, uma não-coincidência, entre o tempo histórico e o tempo meteorológico, entre a história humana e a história natural. O “tempo que faz” é, assim, de uma indiferença soberana em relação ao tempo que o homem faz. Cerca de um ano depois, a 2 de Agosto de 1914, Kafka, no seu diário, deixaria um outro registo - muito pessoal, mas nada estranho às suas fábulas para metafísicos - da divergência entre a tempestade histórica e o tempo convidativo do Verão mitteleuropeu: “A Alemanha declarou guerra à Rússia, Á tarde, piscina”. O que é que aconteceu entretanto às “fábulas” meteorológicas?  Muito simplesmente, a discordância de tempos (ambientais vs humanos) já não funciona e a distinção entre  história humana e história natural entrou em colapso. O conceito de Antropoceno, que coloca o homem como o agente determinante de uma nova era geológica, supõe essa relação catastrófica, onde já não há lugar para ironias. Por isso, a tagarelice muito convivial e socialmente codificada em torno do “tempo que faz”, a conversa de rua serena e cordial sobre a cor do dia e os caprichos do sol e da chuva, é uma coisa do passado. Agora, o que temos é a meteorologia e as suas consequências fornecidas a toda a hora como uma catástrofe permanente ou um aviso de prevenção das catástrofes. É verdade que as formas actuais de prevenção revelam uma tendência paranóica, mas está instalada a ideia de que o clima não é apenas caprichoso e, por isso, somos bombardeados diariamente com avisos de anomalias, excentricidades, recordes, fenómenos meteorológicos nunca vistos ou nunca antes medidos. A obsessão pela medida, pelo rating, pelos números, a passagem do analógico ao digital, alteraram completamente as nossas representações imaginárias. Para definir a “essência da técnica”, Heidegger deu uma vez este exemplo: o homem moderno não pode ver um rio sem o transformar imediatamente em energia (caducou o tempo em que Hölderlin escrevia um hino ao Reno). Assim acontece hoje com o clima e com a meteorologia: um belo dia de Julho é um anúncio de canícula, um Verão português ameno e um Verão escandinavo inclemente é o mundo ao contrário. A meteorologia tornou-se uma semiótica alucinada que lê sinais e mensagens cheias de significado catastrófico em todo o lado, em todos os momentos, em todos os fenómenos. Por trás, há sempre uma vontade de controle ou, pelo menos, a ideia de que nos podemos prevenir contra o que resta de incontrolável. E a prevenção paranóica acaba por produzir parte do mal que quer evitar (como acontece com a destruição levada a cabo pela “limpeza” das florestas). Certo é que a informação sobre a meteorologia nos é fornecida actualmente como o boletim de uma guerra em curso.