Consegue a arquitectura falar por si própria?

A exposição Histórias Construídas, na Garagem Sul em Lisboa, e a exposição E depois, a história, em Serralves no Porto, têm em comum a apresentação de um diálogo entre arquitectos, num formato expositivo que procura desmontar o processo construtivo e mental do complexo mundo da arquitectura.

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Em Serralves, as ilustrações dos Office são impressas, de forma inusitada, em cortinas de banho filipe braga/©fundação de serralves

Em simultâneo, no Porto e em Lisboa, estão patentes duas exposições que têm em comum a vontade de comunicar arquitectura num registo que procura ir além da tradicional abordagem expositiva. Não são exposições de arquitectura monográficas, no sentido clássico da celebração de um autor, nem são exposições lineares de âmbito histórico ou documental. São ensaios curatoriais sobre arquitectura, exercícios experimentais e pontuais de aproximação ao mundo da arquitectura.

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Em simultâneo, no Porto e em Lisboa, estão patentes duas exposições que têm em comum a vontade de comunicar arquitectura num registo que procura ir além da tradicional abordagem expositiva. Não são exposições de arquitectura monográficas, no sentido clássico da celebração de um autor, nem são exposições lineares de âmbito histórico ou documental. São ensaios curatoriais sobre arquitectura, exercícios experimentais e pontuais de aproximação ao mundo da arquitectura.

Se o modelo da exposição de arquitectura clássica se organiza em linhas orientadoras que nos guiam ao longo de uma narrativa clara e objectiva, o modelo do ensaio curatorial sobre arquitectura organiza-se numa rede de pontos em tensão que exige a nossa própria construção da narrativa. Se o primeiro modelo procura um sentido linear evidente, o segundo procura um sentido mais fragmentado na problematização e estabelecimento de relações. Quer em Serralves, quer no CCB, estamos perante duas exposições que se inscrevem neste modelo do ensaio curatorial.

Podemos encontrar uma possível chave para a leitura destas duas exposições no livro Besides, History, que documenta uma exposição patente no Canadian Centre for Architecture (CCA) em 2017 e que serviu de base à exposição de Serralves. Na introdução ao livro, Giovanna Borasi, curadora-geral do CCA desde 2014, escreve um texto intitulado Architecture is Looking for Ways to Speak for Itself.

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A exposição Histórias Construídas, na Garagem Sul em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Borasi começa o texto com Um Manifesto Não-escrito, no qual afirma existirem muitas formas de falar sobre arquitectura: “Podemos descrever as características de um edifício, desenvolver uma ideia que dá corpo a um projecto ou abordá-lo do ponto de vista das condicionantes programáticas ou orçamentais. No entanto, a tarefa mais difícil é fazer com que a arquitectura fale por si própria, partilhando os seus aspectos não construídos e não documentados, como a forma de entender a cidade, um determinado contexto, ou as relações com o tempo, quer seja passado ou futuro.”

O posicionamento de Borasi é muito claro, bem como o do CCA, sendo bem conhecida a posição da sua fundadora, Phyllis Lambert: “Não somos um museu que mostra coisas e diz, ‘Isto é arquitectura.’ Tentamos pôr as pessoas a pensar.”

É com este objectivo que o CCA organiza, desde 2006, um ciclo de exposições que se constrói a partir do encontro entre vários autores, em torno de temas como a relação entre a tecnologia e a técnica ou a noção de interioridade nos espaços domésticos. É na sequência deste ciclo que o CCA apresenta o projecto Besides, History com a participação do arquitecto japonês Go Hasegawa e dos arquitectos belgas Kersten Geers e David Van Severen, do escritório Office, propondo um diálogo sobre a importância da história da arquitectura na prática projectual dos dois escritórios, numa conversa que ganha corpo na apropriação simultânea do trabalho de cada um. Além de mostrarem o seu trabalho, cada escritório pegou nos projectos do outro para os reproduzir na linguagem gráfica que costuma utilizar para comunicar a sua própria arquitectura.

Os Office ficaram responsáveis pelas ilustrações e pelos desenho das plantas a diversas escalas, enquanto Go Hasegawa pela realização dos cortes de pormenor a 1:5 e das maquetas a 1:100.

As ilustrações dos Office têm um grande impacto na exposição pelo facto de serem coloridas e impressas, de forma inusitada, em cortinas de banho penduradas ao longo de todo o comprimento da sala. Desenhadas a computador mas explorando a técnica da colagem, apresentam perspectivas dos projectos a partir do interior das divisões ou do exterior da envolvente. Este tipo de ilustração digital tem assumido um papel muito importante no trabalho dos Office, sendo uma das suas imagens de marca e uma das principais referências no recente fenómeno do desenho arquitectónico pós-digital.

Na exposição de Serralves — com o título em português E depois, a história —, não se expuseram as 12 maquetas brancas à escala 1:100, nem as maquetas à escala 1:1 da Villa Schor dos Office em Bruxelas e da Casa em Kyodo de Hasegawa. Dos sete momentos que conformaram a exposição no CCA, apenas quatro vieram para Serralves.

Nesta amputação à exposição original do CCA perdeu-se a oportunidade de uma aproximação ao trabalho de ambos os escritórios através de um elemento tão importante para a comunicação da arquitectura como a maqueta. Tivesse Serralves conseguido garantir as condições para a adaptação da exposição original na sua plenitude e poderíamos ter tido a oportunidade de um diálogo entre a arquitectura de Álvaro Siza e as maquetas à escala 1:1 dos Office e de Go Hasegawa. Resta-nos assim sentar à mesa, no último momento da exposição de Serralves, para consultar a criteriosa selecção de publicações em torno dos três arquitectos e confrontar ambas as exposições no livro Besides, History.

No CCB, na exposição Histórias Construídas, com curadoria de Amélia Brandão Costa e Rodrigo da Costa Lima, estabelece-se também um diálogo entre arquitectos — Vylder Vinck Taillieu (Bélgica), Maio (Espanha) e Ricardo Bak Gordon (Portugal). Com esta exposição, André Tavares, programador de arquitectura da Garagem Sul, assume a intenção, como nos explicou: “Não se trata de uma celebração do autor/arquitecto mas sim de uma celebração da própria arquitectura e dos seus mecanismos de produção. Não se trata de contrariar a linha de exposições monográficas seguida na Garagem Sul, mas de transformar os modos de expor o saber dos arquitectos para gerar diálogo e construir conhecimento.”

Em ambas as exposições é apresentado um formato expositivo que procura desmontar o processo construtivo e mental do complexo mundo da arquitectura. Enquanto a exposição de Serralves capta a complexidade do processo projectual na manipulação de referências históricas e reinterpretação de elementos tipológicos, a exposição da Garagem Sul revela a complexidade da construção no estaleiro de obra, na evocação da rugosidade e espessura dos materiais.

Com estas duas exposições no Porto e em Lisboa, entre diálogos e cruzamentos, confirmamos a existência de mais possibilidades para a arquitectura poder falar por si própria a partir de outras narrativas e de outros modelos expositivos.