Alan e Ramia podiam ter ido para a Alemanha mas escolheram Portugal

Alan Ghunim e Ramia Abdulghani conheceram-se em Damasco, construíram uma família e uma casa de onde fugiram antes de esta ser totalmente desfeita pelas bombas. Em Portugal, são empreendedores com provas dadas, uma das quais uma empresa que pôs empresários portugueses a exportar os seus produtos para países árabes.

Foto
Alan e Ramia têm 35 anos Miguel Manso

Alan Ghunim e a família deixaram a Síria, quando a mulher não podia mais silenciar a recusa a pedidos de colaboração do regime sírio de Bashar al-Assad. Em pleno conflito, era solicitado a Ramia, formada em Engenharia Informática – como o marido Alan –, que interceptasse as linhas telefónicas da empresa de telecomunicações onde trabalhava.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Alan Ghunim e a família deixaram a Síria, quando a mulher não podia mais silenciar a recusa a pedidos de colaboração do regime sírio de Bashar al-Assad. Em pleno conflito, era solicitado a Ramia, formada em Engenharia Informática – como o marido Alan –, que interceptasse as linhas telefónicas da empresa de telecomunicações onde trabalhava.

Aceitar seria denunciar pessoas. Recusar, seria entregar-se. “Uma pessoa que entra na prisão na Síria já de lá não sai”, diz o marido. Era o que podia acontecer a Ramia. Não mais ver a família. “Perde-se o rasto das pessoas que vão presas”, reforça Alan.

Durante um tempo, a engenheira evitou responder ao que lhe era pedido pelos seus superiores, desculpando-se com muito trabalho com a arte de quem não levanta suspeitas. Não fosse esse imenso perigo, talvez a família não tivesse deixado para trás a casa que construíra, ao longo de anos de trabalho, antes de esta explodir num bombardeamento. Fugiram do perigo que também os salvou.

A escolha

Do aeroporto de Damasco, como quem sai de férias, foram para Marrocos, e depois para Portugal. O irmão de Alan convidou toda a família a ir para a Alemanha. Ghunim não vacilou. “Sinto uma proximidade entre Portugal e o Médio Oriente.” Esse sentimento prevaleceu. “Quando conheço um português, vejo nele a amabilidade, a hospitalidade, a honestidade. Sempre trabalhei com muitas nacionalidades e vejo essa diferença. Os portugueses sabiam o que era a dignidade”, diz Alan que trabalhou no Qatar, Emirados Árabes Unidos, Koweit.

Num desses países, fez o seu primeiro amigo português, um empresário de Aveiro, com quem projectou uma plataforma comercial de venda de produtos locais para Portugal. E com a qual fez sucesso. 

“Na altura pensei: se um dia deixar de trabalhar no Qatar, irei para Portugal. Queria dar um futuro aos meus filhos, em segurança. Para isso, é preciso contar com as pessoas, que tenham emoções e sintam empatia. Eu não sabia como encontrar isso a não ser em Portugal.”

Foi aqui que veio a criar uma plataforma em sentido inverso, onde colocou à disposição de empresários árabes (em árabe) um leque de produtos de 25 empresas portuguesas.

“Mesmo com todos os problemas que existem, não sentimos a discriminação neste país, não sentimos que nos olham de modo diferente.” Ao contrário do que acontece com o irmão na Alemanha, cuja casa foi vandalizada. Ele e a família são muitas vezes alvo de insultos por serem muçulmanos. Gritam-lhes que os alemães não fugiram de Berlim – como os sírios fogem da Síria – quando a cidade foi bombardeada na II Guerra Mundial. Dizem-lhes para deixaram a Alemanha e voltarem para o seu país. 

Labirintos 

Em Portugal, Alan encontrou a generosidade. Primeiro numa mulher que não esquece: a directora do agrupamento de escolas onde inscreveu os dois filhos, nos anos correspondentes aos seus, a meio do ano lectivo, e sem que ainda tivessem documentos. “Ela disse-nos: 'mesmo sem documentos, os seus filhos vêm para esta escola; não se preocupe com os livros, nem com as refeições, não se preocupe com nada; estas crianças são minhas agora'”, diz Alan, rindo.

Vários professores ofereceram a sua ajuda, acrescenta. “Sentimos uma grande generosidade de muitas pessoas, mas não das instituições.”

Para ir juntando os documentos necessários a uma cidadania plena, como quem preenche uma colecção de objectos raros, Alan não desistiu de percorrer balcões e serviços, instituições da administração pública, sem nunca perceber bem o que lhe era pedido e aquilo a que afinal tinha direito. "As instituições são ilhas que não comunicam entre si e ninguém pergunta o que os refugiados querem", acrescenta.

Nas dezenas de contactos administrativos, foi preciso dar muitas explicações, entregar muitos papéis e tudo isto sem falar português e sem que o seu inglês fosse sempre bem acolhido. Mesmo nas Finanças, onde teve de inscrever-se para assinar o contrato de arrendamento do apartamento, pagou 100 euros a um casal que se ofereceu para ajudar com a papelada e a comunicação, dizendo-lhe que esse era o valor que tinha de pagar para ter um número de contribuinte.

Só mais tarde Alan soube do engano. Mas o que vale isso para quem esteve em perigo e fugiu, numa procura incessante que só parou, por momentos, quando alugou a casa que o proprietário julgou estar a alugar um estudante sírio do ISCTE e não a um refugiado sírio?

Foi num site comercial que descobriu uma agente chinesa em Portugal que tinha pressa em arrendar um amplo apartamento perto do Parque das Nações e que o aconselhou a dizer que era estudante. Seria mais fácil convencer o proprietário também ele de nacionalidade chinesa, se não mencionasse a sua fuga e o seu exílio.

Antes de arrendar casa, e sentir "um imenso alívio", vivia como qualquer turista que alugava ao dia um quarto para toda a família no bairro histórico de Alfama. Várias vezes visitou apartamentos, em diferentes bairros. Os senhorios, primeiro solícitos, hesitavam quando dizia que vinha da Síria.

Conta própria

A família chegou a Portugal em Janeiro de 2016 de Marrocos. O estatuto de refugiado (e respectivo título de residência por cinco anos) só lhes foi dado 18 meses depois.

Durante esse tempo, Alan viu escaparem-se-lhe quatro ofertas de trabalho, na Google, Microsoft, Facebook e Siemens, por apenas dispor de um título provisório de seis meses quando os empregadores pediam mais garantias de que o engenheiro informático ficaria a viver em Portugal. Queriam com ele assinar um contrato que ofereceria uma entrada na empresa depois de quatro meses de formação.

Alan conta isto com um sorriso, sempre franco, como se só ele entendesse a falta que lhe fizeram os documentos para ser ele próprio, e dar o seu melhor, em grandes empresas que confiaram nele, como ele confiara em Portugal. Ramia trabalhava então como freelancer enquanto produtora do jornal Financial Times. Com um computador e o seu conhecimento do inglês, criava a partir de Lisboa a estrutura para repórteres deste prestigiado diário britânico fazerem o seu trabalho em países árabes, e depois traduzia. 

Enquanto isso, à falta de documentos, e com a sua formação de Engenharia Informática e o empreendedorismo lavrado no Koweit e no Qatar, Alan criou a sua start-up de venda de produtos portugueses a clientes do Médio Oriente na Internet.

A empresa Made in Portugal – Business to Business (B2B) tinha 150 clientes para a venda de louças, sapatos, maçanetas, alumínios, mármore, atum, cogumelos e água, quando interrompeu a actividade em Fevereiro por pressão dos governos dos países em conflito entre si, para onde a B2B exportava, como a Arábia Saudita. 

“A política matou o negócio”, lamenta Alan, sobre os problemas em sete desses países, a maioria dos quais banhados pelo Golfo Pérsico. Os governos ameaçavam retaliar deixando de comprar se a empresa não recusasse exportar para os vizinhos com quem estavam em conflito. 

O projecto B2B parou em Fevereiro deste ano, sem cair completamente. A página na Internet mantém-se e nela pode ler-se que o B2B Made in Lisboa é “um “portal web que promove profissionalmente empresas portuguesas no mercado do Médio Oriente”, com uma carteira de 25 empresas em Portugal.

Com tudo o que já fez e faz, Alan Ghunim apenas preenche metade daquilo que imaginava fazer quando chegou. Ramia também criou a sua empresa: a Tayybeh (que significa "delicioso" em árabe) oferece os seus serviços de catering de comida síria como já fez a embaixadas, universidades, escolas e eventos como seminários ou conferências. Nessas ocasiões, os dias ganham novo fôlego. 

Porém, para fazer crescer a empresa, e garantir trabalho a tempo inteiro às três cozinheiras sírias que trabalham com ela, Ramia teria de ter o seu próprio restaurante. Para ter um espaço, teria de garantir o pagamento do trespasse e um empréstimo que só lhe seria dado se tivesse residência permanente. 

Identidade e religião

“Enquanto refugiados temos de nos ajudar uns aos outros”, diz Alan sobre o Tayybeh mas também a associação que fundou no ano passado Family of Refugee (FOR) que vai lançar um canal de vídeo no YouTube para promover a partilha e a entreajuda. “Enquanto refugiados, precisamos de aprender uns com os outros.”

É também isso que faz a mulher, Ramia Abdulghani, que teve mais tempo do que o marido para aprender bem o português, frequentando as aulas de português para estrangeiros no Liceu Camões. Os filhos falam fluentemente, na escola, onde fizeram "muitos amigos".

Nas férias, o rapaz frequenta um campo de férias cristão no norte de Portugal. “Eu sou muçulmano, mas acredito que cada um de nós tem o direito de escolher. Eu disse aos meus filhos que são livres de escolher – seja o cristianismo, o budismo, o judaísmo, o hinduísmo", explica Alan. "Vejo assim a religião. Eles continuarão a viver depois de mim."

Cada etapa é um recomeço. A 17 de Julho, o engenheiro, que perdeu quatro anteriores oportunidades por não ter documentos, poderá agora, com o seu título de residência, começar a trabalhar numa grande multinacional instalada em Lisboa, que o contratou como consultor.