Eles pegaram em notas de um dólar e adicionaram-lhes arte (e valor)

100 Dollar Bills Y’All é a exposição que reúne cem trabalhos criados por artistas de todo o mundo a partir de uma nota de dólar americano. Inaugura este sábado, 30 de Junho, na Circus Network, no Porto, com nomes como AKACorleone, Clara Não e Mariana a Miserável.

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Twin Bugattis outside the Art Basel  / I just wanna live life colossal / Leonardo Da Vinci flows / Riccardo Tisci Givenchy clothes”, proclama Jay-Z na música Picasso Baby (2013). Em quatro versos, há duas referências a marcas de automóveis de luxo e a roupas de alta costura, tendência que continua ao longo da música e que é representativa da glorificação da riqueza presente no vasto repertório musical do hip-hop. O questionamento da chamada cultura do “bling bling” levou a Circus Network a convidar cem artistas ligados à ilustração e arte urbana para usar a nota de um dólar como tela. A exposição 100 Dollar Bills Y’All abre este sábado, 30 de Junho, e está patente até 30 de Setembro.

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Twin Bugattis outside the Art Basel  / I just wanna live life colossal / Leonardo Da Vinci flows / Riccardo Tisci Givenchy clothes”, proclama Jay-Z na música Picasso Baby (2013). Em quatro versos, há duas referências a marcas de automóveis de luxo e a roupas de alta costura, tendência que continua ao longo da música e que é representativa da glorificação da riqueza presente no vasto repertório musical do hip-hop. O questionamento da chamada cultura do “bling bling” levou a Circus Network a convidar cem artistas ligados à ilustração e arte urbana para usar a nota de um dólar como tela. A exposição 100 Dollar Bills Y’All abre este sábado, 30 de Junho, e está patente até 30 de Setembro.

“Esta ideia é muito propagada na música e dentro do próprio movimento, mas não corresponde à realidade geral”, atira Ana Muska, designer e co-responsável da galeria com André Carvalho. “Se calhar há alguns artistas que fazem bastante dinheiro, mas a verdade é que, tanto na música, como no graffiti, e principalmente em Portugal, a maioria ainda luta muito para pagar as contas e conseguir viver da sua arte.” O contraste entre a ostentação apregoada e as dificuldades dos artistas emergentes foi a única linha de orientação partilhada com os cem criativos que desenvolveram obras para a mostra.

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André Carvalho e Ana Muska são os criadores da Circus Network Nelson Garrido

Houve total liberdade criativa, conceptual e técnica na elaboração das peças por parte de designers, ilustradores, artistas urbanos e, até, tatuadores. “Dissemos que podiam fazer o que quisessem dentro daquele espaço”, refere Ana, sublinhando que, “mesmo assim, houve quem saísse do espaço da nota, porque foi mostrada essa flexibilidade”. Ao longo de três meses, a galeria recebeu obras de artistas reconhecidos e emergentes de países como Portugal, Alemanha, Hungria, Roménia, Letónia e Reino Unido.

Liberdade para criticar (ou não)

 Os resultados foram completamente diferentes e, em alguns casos, até inesperados. “Uns pegaram no conceito para trabalhar, outros fugiram completamente e tentaram reproduzir o seu trabalho na nota e houve, até, quem a recortasse e reconstruísse”, conta Ana. “[A nota] é uma expressão de cada um, mas também há alguma crítica clara.”

A crítica assume várias ramificações. Há quem aponte o dedo ao dinheiro enquanto unidade de medida do sucesso e da felicidade. É o caso do trabalho de Mariana, a Miserável, que mostra um conjunto de figuras coloridas a desfrutar de um dia de sol na piscina e rodeadas de champanhe e dinheiro, todas a chorar desalmadamente. “Ilustrei o que se costuma dizer ‘O dinheiro não traz felicidade’ e tive também a preocupação, ao utilizá-la [à nota] como suporte, em deixar a descoberto zonas específicas, por exemplo os raios de sol em torno da frase 'in God we trust”, explica por e-mail ao P3.

O britânico Richt inspirou-se na cultura das armas, na violência nas escolas e no dinheiro para criar uma obra que aborda sem pudor aquele que é, de acordo com o artista, “o legado histórico dos Estados Unidos”. Na sua nota, pode ver-se o desenho de uma arma em estilo de desenho animado com a legenda “Hi kids!” (Olá, miúdos!). “O hip-hop é muitas vezes acusado de falar de tudo isso e de ser má influência, mas a verdade é que as armas e a violência existiam antes dele”, ressalva. “O hip-hop é uma expressão artística que espelha a realidade que as pessoas vivem.”

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Montagem da exposição Nelson Garrido

Multiplicar o valor da nota

O trabalho de Clara Não recorre aos jogos de palavras que já lhe são conhecidos, desta feita no substantivo nota e no verbo notar. “A minha inspiração primária foi a noção de se notar, de se reparar num artista, brincando igualmente com a palavra nota, como se nota”, escreve a artista, num e-mail enviado ao P3. “A partir daí, notei que nos dias que correm não se nota tanto um tag, mas a fotografia desse tag no Instagram; não se nota tanto se uma ilustração está a vender bem numa galeria, mas antes quantos likes tem”. As redes sociais enquanto fonte de exposição e falsa medida de sucesso são o alvo principal de Clara numa obra subtil que coloca a palavra “Missing” ("Procura-se") em destaque.

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A disparidade de técnicas e materiais utilizados verifica-se, por exemplo, na intervenção da designer Aheneah, cujo trabalho passa muito pela brincadeira com materiais têxteis. Neste caso, a nota está quase totalmente preenchida de linhas coloridas que são tecidas no próprio papel. “Ao tecer dinheiro, estou também a tecer a sua importância, entrelaçando ora recursos, ora produção artística”, clarifica, acrescentando que esta “é uma oportunidade para pensar na importância do dinheiro na produção artística e da produção artística na valorização daquilo que é produzido”.

Há, ainda, quem use o dólar como suporte para deixar a sua marca gráfica. O alemão Vidam pintou a nota com um elemento geométrico que pauta a sua obra neste momento — a fita de Möbius. “O curso infinito da fita representa a circulação de dinheiro e a infinita dependência das pessoas em relação a ele”, descreve. Já o português AKACorleone partiu da “carga simbólica forte da nota, das referências visuais dos filmes ou das músicas [norte-americanos]” e quis "mantê-la o mais intacta possível”, conjugando os elementos gráficos originais e a sua própria linguagem gráfica.

Quer estejam habituados a pintar em grandes murais ou a desenhar em espaçosas folhas de papel, todos os artistas deixaram um bocadinho de si num pedaço de papel. E quer haja comentário político, social ou cultural ou a simples desconstrução visual da nota, o mais importante é, segundo Ana Muska, “perceber como se pode transformar uma nota de um dólar numa obra de arte que vale muito mais”.