Na paisagem do Vale do Varosa há uma herança monástica para redescobrir

Entre Lamego e Tarouca há um roteiro composto por seis monumentos, aos quais se irão juntar outros, que contam a história do passado conventual de uma região marcada pelo estabelecimento dos primeiros monges da Ordem de Cister em solo nacional.

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A expressão “comer como um abade” não está enraizada na cultura portuguesa por acaso. Indicativo de que um repasto correspondeu ou superou as expectativas de alguém que não tinha outro objectivo senão satisfazer os prazeres dos sentidos gustativos, encaixa que nem uma luva num país cuja população faz por aproveitar todos os momentos de reunião para pôr os pés debaixo de uma mesa. E que nessa circunstância não falte nada. Esteja a mesa farta.  

É no Vale do Varosa, entre Tarouca e Lamego, que há uma ligação estreita com um passado monástico, desde que no século XII se instalou o primeiro mosteiro da Ordem de Cister em solo nacional, em São João de Tarouca, decorria o ano de 1154. No mesmo concelho, do distrito de Viseu, poucos anos depois, em 1168, construía-se o segundo na região, em Santa Maria de Salzedas.

É neste último que há oito anos se leva a cabo uma tradição que tem como apelo um repasto à moda daqueles que deram origem à expressão de que falávamos. É o Jantar Monástico, que acima de tudo serve como mote para levar cerca de uma centena e meia de pessoas ao vale do rio Varosa para conhecer a herança deixada na região por monges, sobretudo cistercienses, mas também franciscanos.

Como em anos anteriores, o evento realizou-se na segunda semana de Junho, desta vez com o tema dos cereais como ponto de partida para o jantar. Antes dessa hora chegar, abrem-se as portas à redescoberta de uma zona com paisagem pintada pelo sabugueiro e por monumentos seculares de uma rede que arrancou em 2008, com a recuperação de três espaços aos quais se juntaram outros três, totalizando em 2018 seis pontos de interesse. Nos próximos anos, a rede, denominada por Vale do Varosa, irá crescer.         

A proximidade é uma vantagem

Percorremos numa tarde cinco dos seis monumentos. Guardamos para o dia seguinte o último. É possível fazer o roteiro completo em apenas um dia. As distâncias entre eles são curtas, não muito mais do que dez minutos de carro. Para ser feito com qualidade, recomenda-se pelo menos dois dias. A gastronomia obrigará a paragens mais demoradas.

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Mosteiro de Salzedas Paulo Pimenta

Começamos pelo Convento de Santo António de Ferreirim, o único fora do concelho de Tarouca. Estamos em Lamego, concelho vizinho, onde em 1525 D. Francisco Coutinho, Conde de Marialva, doou aqueles terrenos aos franciscanos para a construção do convento. 

De traça manuelina, sobra o pórtico da igreja, restaurada entre 2001 e 2005, altura em que lá se instalou um centro interpretativo equipado com suporte audiovisual que ajuda na reconstrução histórica daquele espaço. Até à requalificação, desde 1834, quando foram extintas as ordens religiosas, estava em ruínas. Do espólio recuperado é possível ver as oito tábuas pintadas pelos Mestres de Ferreirim no século XVI.

Seguimos para Tarouca, onde se fará o resto do roteiro, por um percurso que dispõe de bons acessos e sinalização para quem não confia no GPS.

Entramos na área onde se estabeleceu em Portugal o primeiro Mosteiro da Ordem de Cister, vinda de França, onde nasceu em 1119, ainda que a sua origem remonte ao final do século anterior.

Vemos ao fundo o Mosteiro de São João de Tarouca. Na verdade, de pé, sobra a igreja, também restaurada. Em terreno contíguo, numa área generosa, está a ruína das dependências monásticas, que depois da extinção das ordens religiosas, após a igreja ter sido convertida em templo da paróquia, foi vendida em hasta pública, tendo sido explorada como pedreira até aos inícios do século XX. Depois de 1956, quando a igreja foi classificada como Monumento Nacional, e mais tarde, em 1976, toda a área contígua, foi sendo adquirida pelo Estado para que, entre 1998 e 2010, passasse por um processo de restauro. 

Como em todos os outros monumentos, o trabalho de restauro é notável. Neste espaço em particular vai ao pormenor de recuperar o horto monástico, numa área mais elevada, próxima das ruínas dos dormitórios.

Também neste caso, o antigo celeiro acolhe um centro interpretativo e uma loja com produtos feitos da flor do sabugueiro, como compotas, infusões, licores ou cerveja. De resto, toda a paisagem entre monumentos é marcada pela presença desta árvore.

Está em todo o percurso até chegar a Ucanha, onde ficamos a conhecer a Ponte Fortificada, edificada entre os séculos XIV e XV. Está no caminho onde na época romana passava a estrada que ligava Lamego ao interior, com passagem por Moimenta da Beira e Trancoso. Para entrar em Tarouca havia que pagar portagem.

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Capela de São Pedro de Balsemão Paulo Pimenta

Edificada num povoado de caminhos estreitos em paralelepípedo nas margens do Varosa, era também zona de moinhos. Hoje, um dos motivos para lá ir é também é gastronómico.

Este é o último ponto de passagem da visita integrada no Jantar Monástico antes de seguirmos viagem até Salzedas para o mosteiro onde é servido o repasto. Em dias normais só se paga entrada (3 euros) nos mosteiros de São João de Tarouca, no de Santa Maria de Salzedas e na Capela de Santo António de Ferreirim.

No dia seguinte também visitamos a Capela de São Pedro de Balsemão, que ficou de fora desta visita, mas também faz parte da rede de monumentos do Vale do Varosa. Ladeada por uma montanha que a esconde e pelo rio Balsemão, um afluente do Varosa, está uma capela cuja origem remonta ao século X. Actualmente está integrada num solar seiscentista num vale onde está erigido um pequeno povoado.

“Sirva-se a pitança”

De volta a Salzedas, passamos pelo Mosteiro de Santa Maria, cuja construção começa em 1168 e passa por uma ampliação nos séculos XVII e XVIII. É aquele mosteiro masculino cisterciense casa de abrigo de obras do pintor renascentista Vasco Fernandes, mais conhecido por Grão Vasco, e de trabalhos de Bento Coelho da Silveira ou Pascoal Parente.

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Paulo Pimenta

É no Claustro do Capítulo que é servido o jantar. Com cantos gregorianos em fundo, mesas e bancos corridos, cerca de 150 pessoas trajadas a rigor com hábitos de monges de Cister esperam pelo repasto. Há um figurante que vai anunciando os pratos que vão sendo servidos depois de provados pela figura do abade. “Sirva-se a pitança”, diz-se de um púlpito, dando ordem para o início da refeição.

Explica-nos o director do Nuseu de Lamego e coordenador do projecto Vale do Varosa, Luís Sebastian, que esta tradição começou há oito anos como uma brincadeira de um grupo de amigos e que mais tarde ganhou outra dimensão. Actualmente serve como mais um elemento em prol da divulgação do Vale do Varosa, que abrange os concelhos de Lamego e Tarouca, no Alto Douro, e é desenvolvido sob a égide da Direcção Regional de Cultura do Norte, com gestão directa do Museu de Lamego.

Este, explica, é um projecto que arrancou em 2008, que, tendo como mote a recuperação e conservação do património histórico da região, pretende também dar a conhecer a cultura, gastronomia e outro património edificado, incluindo o turismo rural, numa zona que acredita ter um “grande potencial de desenvolvimento”.

“O Vale do Varosa não é só a rede de monumentos. Vale também pela paisagem cultural, natural e gastronomia. Neste momento temos a Tasquinha do Matias na fase final das 7 Maravilhas gastronómicas portuguesas, há praias fluviais e solares familiares recuperados para turismo rural. É uma zona para ser conhecida com calma, ao ritmo do sol e da lua.”