Uma bienal em freejazz

Freespace, o tema geral da Bienal de Veneza, evoca generosidade e optimismo mais do que circunscreve uma curadoria precisa. Daí a sensação de uma bienal em freejazz. Prevalecente é o entendimento antagónico da arquitectura como discurso, a norte, e como forma, a sul. A representação britânica deu-se ao luxo de abandonar o edifício pavilhonar e criar uma “plataforma” no terraço.

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Island É o mais emblemático e discutível pavilhão nacional da Bienal. O pavilhão existente, desenhado por Edwin Alfred Rickards em 1909, é deixado vazio e uma estrutura em andaimes constrói uma escadaria de acesso a um terraço panorâmico. A representação britânica prefere uma “plataforma” a um edifício, abrindo languidamente sobre a paisagem veneziana Italo Rondinella

A primeira peça que vi na edição de 2018 da Bienal de Veneza foi a professora de Princeton Beatriz Colomina deitada numa cama recriando o famoso Bed In que John Lennon e Yoko Ono realizaram no Hilton de Amesterdão, Room 902, em 1969, para promover a paz. Com os icónicos cartazes “hair peace” e “bed peace” afixados na janela, Colomina conversava com os vários Johns e Yokos que se iam deitando na cama. O pavilhão holandês, com a curadoria de Marina Otero Verzier, chama-se Work, Body, Leisure e resume-se a uma sala de cacifos cor de laranja que ao abrirem-se dão lugar a pequenas imagens ou a salas ocupadas por instalações. Os projectos revelados referem-se às transformações do corpo geradas pela robotização, tema recorrente na arquitectura, aqui recolocado à maneira de um Yellow Submarine de cacifos.

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A primeira peça que vi na edição de 2018 da Bienal de Veneza foi a professora de Princeton Beatriz Colomina deitada numa cama recriando o famoso Bed In que John Lennon e Yoko Ono realizaram no Hilton de Amesterdão, Room 902, em 1969, para promover a paz. Com os icónicos cartazes “hair peace” e “bed peace” afixados na janela, Colomina conversava com os vários Johns e Yokos que se iam deitando na cama. O pavilhão holandês, com a curadoria de Marina Otero Verzier, chama-se Work, Body, Leisure e resume-se a uma sala de cacifos cor de laranja que ao abrirem-se dão lugar a pequenas imagens ou a salas ocupadas por instalações. Os projectos revelados referem-se às transformações do corpo geradas pela robotização, tema recorrente na arquitectura, aqui recolocado à maneira de um Yellow Submarine de cacifos.

O segundo momento que retive foi a capela projectada por Eduardo de Souto de Moura, no Pavilhão do Vaticano, na Ilha de San Giorgio Maggiore.

Podemos dizer que a paz liga estes dois momentos. Mas são dois pólos absolutos da arquitectura que se pode visitar em Veneza, e isso impressiona. O remake do activismo sixties, abrindo um cacifo laranja, e a construção pesada e pétrea, com mármore de Vicenza, são experiências de um passado radicalizado, recente e longínquo, que significam dois mundos da arquitectura: o do discurso e o da forma. Na reencenação do Bed In, a mãe de todos os activismos, estamos perante a dissolução da arquitectura em discurso; na capela-túmulo de Souto de Moura é “uma arquitectura para os museus”, um conceito de Aldo Rossi, que emerge. Quando uma das juntas das pedras do altar se transforma na linha vertical da cruz cristã, Souto de Moura ganha o Leão de Ouro. (Que foi atribuído à Herdade do Barrocal, abreviadamente exposta no Arsenale). Sem precisar de discurso ou evocando o indizível: a morte, o transcendente. Aquilo que melhor é revelado pela forma, dirão os artistas.

Este cisma define um entendimento antagónico da arquitectura no norte e no sul da europa, ou entre a cultura anglo-saxónica e a latina. Em qualquer caso, Peter Cook, figura lendária dos Archigram, vestido à Tom Wolfe – “visto-me sempre assim”, diz-nos – considera que se trata de uma Bienal de há 30 anos, com as curadoras irlandesas, Yvonne Farrell and Shelley McNamara, a esforçarem-se por agradar ao sul. O que talvez explique o Leão de Ouro de carreira atribuído a Kenneth Frampton, de origem inglesa, trabalho na América, mas reconhecido como historiador de uma “resistência” que é vista como empenho do sul.

Nesse sentido de um certo arcaísmo, o Pavilhão Central nos Giardini é multiplicado em várias curadorias que visam reintroduzir, não tanto temas de há 30 anos, mas várias faces antigas da profissão, clássicas, académicas, de “representação honesta”, da produção física da arquitectura. Um sucesso garantido é o mezanino com várias maquetes de Peter Zumthor, cada uma experimentando materiais diferentes; e é comovente encontrarmos desenhos de Álvaro Siza e Paulo Providência na sala com curadoria de Elizabeth Hatz, Line, Light, Locus, uma homenagem ao desenho como expressão anterior à escrita.

Numa apreciação rápida, dir-se-ia que o tema proposto pelo duo de curadoras para a Bienal, Freespace/Espaço Livre, funciona mais como um mote que pretende evocar optimismo e generosidade, do que como uma solução disciplinar para os problemas da arquitectura. É algo light, não tem a densidade de outras curadorias anteriores. Por isso temos a sensação de um certo freejazz curatorial ao percorrermos brevemente os espaços expositivos. Mas isso não é necessariamente negativo.

A inauguração do Pavilhão do Vaticano, dez capelas efémeras, ou talvez não, erguidas num jardim extraordinário, foi o momento determinante da abertura do evento. Talvez se possa estabelecer uma relação com a festa que abre A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino (de 2013), embora em ambiente bucólico, sem álcool, nem drogas, nem prostitutas, nem música disco (talvez a maior falha). Mas o efeito cinematográfico do desfile interminável da beleza italiana intermediado por arquitectos internacionais, liderados pelo Cardeal Ravasi e pelo curador Francesco Dal Co, perdidos num bosque de arquitecturas de autor é difícil de superar. A peça de Souto de Moura, como dizia, toca num bem precioso no nosso tempo: a autenticidade. Mas, mesmo ao lado, a capela de Carla Juaçaba é afinal a única peça verdadeiramente freespace: uma estrutura aberta com uma cruz ao alto e uma no chão, em aço inox, que serve de banco, apoiada em sete peças de betão armado. Com uma peça engenhosa e elogiada, a arquitecta do Rio de Janeiro contrastava com a presença hegemónica dos arquitectos de São Paulo no eficaz Pavilhão do Brasil (Walls of Air/Muros de Ar) e com a apresentação contida, na Cordoaria do Arsenale, do GrupoSP.

O mais emblemático e discutível pavilhão nacional da 16ª Exposição Internacional de Arquitectura – Bienal de Veneza é o britânico, que obteve uma menção honrosa. Chama-se Island e tem a curadoria de Caruso St. John Architects e Marcus Taylor. O pavilhão existente, desenhado por Edwin Alfred Rickards em 1909, é deixado vazio, e uma estrutura em andaimes constrói uma escadaria que dá acesso a um terraço panorâmico. Não sendo exactamente original – em 2006, o pavilhão francês propunha através de uma estrutura em andaimes a ocupação do edifício, e não a exposição de conteúdos (EXYZT, Metavilla) – a representação britânica prefere uma “plataforma” a um edifício, abrindo languidamente sobre a paisagem veneziana. Porque será? O British Council que é responsável pelo pavilhão e os curadores propõem um extenso programa de debates sobre os temas do dia: “reconstrução”, “isolamento”, “colonialismo”. Mas é o Brexit que surge como irresistivelmente contaminando Island, a “plataforma” e a vista. Todos os dias será servido chá às 16h.  

Nota: O crítico do PÚBLICO foi um dos convidados pela DGArtes para participar no concurso para a curadoria do Pavilhão de Portugal, abstendo-se, por isso, de escrever sobre a representação oficial portuguesa em Veneza