O tempo perguntou às lojas quantas histórias o tempo tem

Se lhes chamamos lojas históricas é porque têm histórias para contar. Há um livro aberto à espera das memórias lisboetas do seu comércio mais emblemático. Um livro de saudades, sim, mas que se quer capaz de contar sempre novas histórias.

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Há exactamente 60 anos, num dia de Junho talvez já depois do fim das aulas, a professora Ema Quintas Alves abriu um livro na primeira página, pegou numa caneta e escreveu em letra miudinha uma dedicatória a Maria Adelaide. “Pela sua simpatia, entusiasmo, boa vontade em acompanhar as lições, mesmo as mais aborrecidas”, diz a mensagem, que expressa o desejo de que Maria Adelaide “não deslustre o berço insigne, onde dormiu os primeiros sonos, tornando-se uma boa aluna e uma futura universitária de elevado nível”.

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Há exactamente 60 anos, num dia de Junho talvez já depois do fim das aulas, a professora Ema Quintas Alves abriu um livro na primeira página, pegou numa caneta e escreveu em letra miudinha uma dedicatória a Maria Adelaide. “Pela sua simpatia, entusiasmo, boa vontade em acompanhar as lições, mesmo as mais aborrecidas”, diz a mensagem, que expressa o desejo de que Maria Adelaide “não deslustre o berço insigne, onde dormiu os primeiros sonos, tornando-se uma boa aluna e uma futura universitária de elevado nível”.

Aquele exemplar de Portugal Pequenino, o livro infantil que Raúl Brandão escreveu com a mulher, Maria Angelina, pouco antes de morrer, andou nas voltas da vida, ganhou rugas, ficou amarelado e foi parar ao número 50 da Calçada do Combro, em Lisboa.

Foi lá que Guilherme Nunes o encontrou. No meio das centenas de livros que povoam o Alfarrabista Nova Eclética, aquele saltou-lhe à vista. Abriu-o, a dedicatória estava intacta, o nome da destinatária completo. Ali estava uma oportunidade perfeita, rara, para tentar estabelecer “o cruzamento entre o objecto, a loja e a pessoa”, explica. Assim aconteceu. Mais de meio século mais tarde, Maria Adelaide recebeu de novo o livro que a professora Ema lhe dedicou.

“Não há verdadeira primavera nos países onde não há andorinhas”, diz-nos o Portugal Pequenino. Não há verdadeiras cidades nas cidades onde não há memórias. Traduz-se um pouco desta forma o que norteou Guilherme Nunes, Lucas Yu, António Silva e outros colegas da agência publicitária Leo Burnett a lançar o projecto As coisas que as coisas contam. Durante os últimos três anos andaram a correr as lojas tradicionais da cidade, a perguntar por histórias interessantes, a tentar encontrar os protagonistas.

Foi quase uma pedinchice constante, reconhecem sorridentes. “Grande parte do trabalho foi de pesquisa, investigação mesmo”, diz António Silva, director de design na agência. “Isso era o mais trabalhoso, mas o melhor”, acrescenta Lucas Yu, director de arte. Com a convicção de que “existem muitas histórias para contar”, nas palavras de Guilherme Nunes, procuraram e encontraram Maria Adelaide, procuraram e encontraram a neta de Almada Negreiros, procuraram e encontraram a filha de Maria de Lurdes. Três pessoas, três lojas, três histórias – e agora três vídeos que estão disponíveis no site do Círculo das Lojas de Carácter e Tradição de Lisboa, um projecto do Fórum Cidadania Lx que se associou à iniciativa.

Almada Negreiros encomendou uns óculos na André Ópticas, no Chiado, mas nunca os foi buscar. Agora estão nas mãos de familiares. Maria de Lurdes ganhou 250 gramas de café da Casa Pereira da Conceição, na Baixa, com um poema: “Se tu queres um amor em brasa/Da mulher que amas em vão/Dá-lhe o bom café da casa/Pereira da Conceição”. Passados 58 anos, a família descobriu esta quadra e bebeu o café.

“Quando se entrega algo na mão de alguém, tem um impacto muito forte”, conta Lucas Yu. Ele e Guilherme são brasileiros, o que explica parte do fascínio pelas lojas históricas de Lisboa. “Em São Paulo, a loja mais velha tem para aí uns 20 anos”, atira Lucas. “Como no Brasil não tem, quando a gente encontra um sítio destes quer logo fazer qualquer coisa”, concorda Guilherme Nunes. Mas não foi isso que deu fôlego ao projecto, até porque os colegas portugueses logo se quiseram envolver. “Isto nasceu de as pessoas gostarem da cidade, de a viver. A cidade tem uma essência, uma história muito genuína”, diz Lucas.

Um livro que conta histórias

Lançados os vídeos, está agora também pronto um livro, um grande livro, para contar mais histórias das lojas históricas. É um grande volume com capa de couro azul e dourada, na qual se pôs um dedal, um relógio, grãos de café, uma chave, um botão, um par de óculos. Nos 54 negócios que fazem parte do Círculo das Lojas de Carácter e Tradição de Lisboa há mercearias, farmácias, tabacarias, modistas, ourivesarias, floristas, livrarias, ópticas, casas de ferragens e decoração, restaurantes e bares.

“É um livro a todos os títulos diferente, inovador e uma ‘pedrada no charco’, que pode ser um veículo de promoção extraordinário para as lojas-membros do Círculo”, considera Paulo Ferrero, um dos responsáveis desta iniciativa (que surgiu ainda antes do programa Lojas com História da câmara municipal). Trata-se de “uma oportunidade única para subir mais um degrau nesta caminhada, por vezes lenta, do Círculo em prol da salvaguarda, viabilização e promoção das lojas históricas de Lisboa”, diz Ferrero.

O livro contém as três histórias já contadas, mas a maioria das folhas está em branco, à espera do contributo dos lisboetas. “O livro é infinito porque as histórias são infinitas”, explica Lucas. “Era óptimo fazermos um segundo volume”, admite António. Não se quer apenas que os mais velhos preencham o espaço com nostalgia, antes que todos criem novas histórias, permanentemente. “Isto também é para que as pessoas tenham curiosidade e conheçam as lojas”, diz António.

O livro vai andar a circular pelas lojas do Círculo, mas também é possível deixar testemunhos no site. Daqui a algum tempo, o livro vai também ser um objecto que conta uma história – muitas histórias. Mesmo que nem todas sejam felizes. Logo a princípio, há um in memoriam às lojas caídas: “Por esta ou aquela razão, Lisboa ficou mais pobre. Tentaremos tudo para que não haja mais nenhum encerramento”. Sem andorinhas não há primavera, sem lojas históricas não há histórias.