Há uma Jangada a vogar contra as assimetrias culturais do interior

Durante uma semana, o Festival Internacional de Artes do Espectáculo – Folia, organizado pela companhia de teatro Jangada, que decorre até 28 de Abril, leva até Lousada um conjunto de espectáculos “para todos os públicos”.

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Eduardo é o sétimo filho de um casal oriundo de uma localidade da região do Tâmega e Sousa, no Norte de Portugal. É baptizado com o nome errado. Toda a gente dali sabe que o filho se deveria chamar Adão. Os pais arriscaram tudo ao não o baptizar com o nome daquele que, segundo a tradição judaico-cristã, terá sido o primeiro homem. Tem o destino traçado. Se não palmilhar o mundo e passar por sete pontes, sete fontes e sete montes, transformar-se-á em lobisomem.

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Eduardo é o sétimo filho de um casal oriundo de uma localidade da região do Tâmega e Sousa, no Norte de Portugal. É baptizado com o nome errado. Toda a gente dali sabe que o filho se deveria chamar Adão. Os pais arriscaram tudo ao não o baptizar com o nome daquele que, segundo a tradição judaico-cristã, terá sido o primeiro homem. Tem o destino traçado. Se não palmilhar o mundo e passar por sete pontes, sete fontes e sete montes, transformar-se-á em lobisomem.

É este mito local o mote para a peça de teatro Correr o Fado, encenada e criada por José Carretas, que hoje assinala o arranque da décima oitava edição do Festival Internacional de Artes do Espectáculo — Folia, organizado pela companhia Jangada que, há quase 20 anos, assentou arraiais em Lousada onde até dia 28 deste mês decorre o evento, para levar a segunda arte àquela área geográfica do interior com cerca de meio milhão de pessoas e onde a programação cultural escasseia.

Quem o diz é o director e programador do festival, Vítor Fernandes, há um ano aos comandos do Folia. Conta-nos que foi essa escassez que em 1999 levou Xico Alves, Faria Martins e Luiz Oliveira a criar a companhia de teatro Jangada. O nome não foi escolhido ao acaso. É esta construção de recurso feita da união de vários troncos amarrados por uma corda capaz de navegar mares inóspitos, mantendo-se à superfície mesmo que um dos toros fique pelo caminho. Havendo oportunidade, mais uma peça pode ser adicionada à construção.

Em Lousada, em 1998 é inaugurado o teatro municipal. Com parte da logística montada surge a oportunidade para levar adiante o projecto dos quatro fundadores. Desde 1999 é ali, no auditório com capacidade para 250 pessoas, que aquele grupo trabalha e onde tem residência fixa.

Conta-nos Vítor Fernandes, que além de director do festival também é actor na companhia, que Xico Alves, profissional desde 1974, já tinha ajudado a fundar outro grupo em Famalicão, a Associação Teatro Construção, em Joane, da qual Luiz Oliveira, outro fundador, também fez parte. A lógica de criar uma companhia em Lousada era a mesma que levou ao nascimento da Construção: levar o teatro a quem vive fora dos grandes centros urbanos.

Objectivo traçado desde o início seria igualmente criar um evento unificador. Nasce então na primeira década de 2000, já com uma estrutura montada composta por uma companhia e um auditório, o Folia. Há 11 anos nasceu também o Foliazinho, orientado para um público mais infantil.

Uma porta de entrada para o teatro

Foi este festival e todo o resto do trabalho desenvolvido pela companhia fundamental para o percurso trilhado agora pelo actual director. Nasceu no Porto há 33 anos, mas desde sempre viveu em Lousada. “Era um adolescente quando a companhia nasceu”, diz. Até esse momento era ao Porto que se deslocava para poder ter acesso à cultura, assim como de uma forma geral grande parte da população, conta. A partir do momento em que a companhia inicia actividade, desperta também a vontade de querer ser actor. “Aconteceu comigo e com outros”, afirma. “A Jangada foi muito importante na minha decisão e na de outros.”

Começou a colaborar com a companhia em 2006 e a partir de 2009 passou a residente. Actualmente contam com oito profissionais a tempo inteiro e cerca de 20 colaboradores que durante o ano participam em várias actividades. Trabalha-se dentro do registo da polivalência. Quem ali está sabe que terá de abraçar mais do que uma função. Esse espírito ajuda a criar um elo de ligação maior: “Funcionamos como uma família.”

Anualmente fazem cerca de 100 apresentações em vários pontos do país e no estrangeiro. Em Lousada são cerca de sete espectáculos por ano para o “público geral” e aproximadamente duas dezenas especificamente para crianças. No mundo, viajaram por uma dezena de países, como por exemplo: Espanha, França, Lituânia, Grécia, Estados Unidos, México, Brasil ou China. De acordo com a direcção, ao longo de quase duas décadas actuaram para cerca de 250 mil espectadores.

São uma companhia itinerante, o garante de parte das receitas. Contam ainda com o apoio do Ministério da Cultura e da autarquia. É dessa itinerância que surge um maior conhecimento do panorama geral do sector do teatro em território nacional. Se há alguns anos se notavam mais diferenças entre o interior e as cidades maiores, actualmente entende não existirem tantas nas condições de trabalho disponíveis para os actores no que toca a equipamentos. “Há uma boa rede de teatros pelo país todo”, assegura. Porém, sublinha que é na programação que ainda se notam algumas assimetrias. Se a companhia nasceu para “corrigir essas assimetrias”, continua ainda a fazer sentido continuar com o mesmo projecto.

Especialmente na área no Tâmega e do Sousa, que abrange concelhos como Amarante, Baião, Castelo de Paiva, Celorico de Basto, Cinfães, Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses, Paços de Ferreira, Penafiel e Resende, apesar de a população rondar o meio milhão de habitantes, há um “défice de oferta cultural”. Ainda assim sublinha que a procura também não é a mais elevada. “Não sei se haveria espaço para muitas mais companhias”, diz.

Porém, o Folia não sofre com a escassez de público. A média de espectadores anda na casa dos 120 por espectáculo. “Durante a semana é natural que haja menos público”, diz. No fim-de-semana as salas enchem-se.

Se no ano passado a temática era o medo, este ano o destaque vai para o humor. O orçamento de 25 mil euros divide-se por oito espectáculos que vão “do mais comercial ao mais vanguardista”. Tendo a noção de serviço público como bandeira, tentam chegar a todos os públicos. Vão de companhias como a Comédia à La Carte, cujo espectáculo se esgotou, até Joseph Collard, que já fez parte do Cirque do Soleil e actua no dia 27 de Abril, passando pelo Chapitô, que apresentou Electra a 23 de Abril. Pela primeira vez no evento passa a companhia Anjo Fingido, com o espectáculo Mulheres Móveis, no dia em que se celebra a liberdade.  

Um manancialde  lendas e mitos

Os dois primeiros dias foram assegurados pela prata da casa, com Correr o Fado, autoria e encenação de José Carretas. É a segunda vez que trabalha com a Jangada. Esta é a primeira peça de quatro que lhe foram encomendadas sobre a mesma temática: mitos e crenças populares associados àquela área geográfica.  

Nascido no Porto, o autor e encenador desde a década de 1970 aborda um assunto que não lhe é estranho. De há uns tempos para cá tem feito trabalhos de raiz semelhante. “Não gosto de ir roubar às outras peças, prefiro roubar à vida dos outros”, diz. Porém, não é por isso que não se tem surpreendido durante o trabalho de investigação que tem levado a cabo para chegar à encomenda que tem em mãos.

“No Sousa e Tâmega é possível encontrar um manancial riquíssimo de lendas e mitos”, conta. Inesperadamente percebeu que muitas das “superstições” que fazem parte dessas lendas ainda são tidas como verdades absolutas. “Há um mundo escondido, não revelado, que ainda existe” afirma, como é exemplo o mito do sétimo filho que serve de mote para a peça que foi à cena no passado fim-de-semana no Teatro Municipal de Lousada. Outras lendas encontrou, que servirão para as outras três peças, que ainda são levadas a sério por muita gente “dos meios mais pequenos”.

Meios mais pequenos que, ao cabo destes largos anos de experiência, diz estarem muito diferentes, “para melhor”, em comparação com o passado no que se refere às condições para se poder fazer teatro. “Há agora no interior quase um circuito paralelo ao das grandes cidades com boas peças feitas por bons actores”, afirma. Para isso entende muito ter contribuído o número de escolas de actores que actualmente existem: “Só no Porto há pelo menos quatro, duas profissionais e duas superiores, que formam dezenas de pessoas por ano. Muitos desses actores são obrigados a ir para esse circuito com bons profissionais, mas menos mediático.”