Pressão da rua leva a demissão do primeiro-ministro arménio que queria manter-se no poder

Analistas dizem que os problemas não se esgotam na chefia do Governo. “A maioria da população não tem confiança nas autoridades, nem no sistema político em geral".

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Arménios celebram nas ruas o anúncio de demissão do primeiro-ministro HAYK BAGHDASARYAN/EPA

Ninguém antecipava que o primeiro-ministro arménio, Serzh Sarkisian, anunciasse a demissão nesta segunda-feira, depois de ter ignorado dias de protestos contra a sua nomeação para a chefia do Governo. Esta nomeação seguiu-se a uma mudança constitucional que muitos viram como um meio de Sarkisian se manter no poder depois de cumprir dez anos na presidência e esbarrar no limite de dois mandatos.

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Ninguém antecipava que o primeiro-ministro arménio, Serzh Sarkisian, anunciasse a demissão nesta segunda-feira, depois de ter ignorado dias de protestos contra a sua nomeação para a chefia do Governo. Esta nomeação seguiu-se a uma mudança constitucional que muitos viram como um meio de Sarkisian se manter no poder depois de cumprir dez anos na presidência e esbarrar no limite de dois mandatos.

E também ninguém adivinhava o tom da declaração feita através do seu gabinete. “Nikol Pashinian tinha razão”, disse Sarkisian, falando do líder da oposição. “E eu enganei-me.”

No domingo, Serzh Sarkisian debateu com Nikol Pashinian numa conversa emitida ao vivo pela televisão – foi uma curta troca de quatro frases em que Pashinian pediu a demissão de Sarkisian e este ripostou que não aceitava a “chantagem” do líder de um partido “com 8% [dos votos] nas eleições”.

Pashinian exigia a demissão de Sarkisian argumentando que este engenhou um modo de se manter no poder promovendo a alteração constitucional para cortar os poderes presidenciais e aumentar os do primeiro-ministro. Quando defendeu a medida, em 2015, Sarkisian garantiu que “não aspirava” ao cargo de chefe de Governo. Mas na semana passada, o Parlamento nomeou-o para chefe de Executivo com poderes aumentados, mantendo-se assim a figura mais poderosa do país. 

O crescendo de tensão terá justificado a decisão do primeiro-ministro – “o medo de instabilidade foi certamente um dos grandes motivos para Sarkisian não endurecer a resposta”, disse no Twitter Thomas de Waal, analista especialista em Arménia do centro de estudos Carnegie Europe. A Arménia, notou, é um país pequeno num estado de conflito suspenso com o Azerbaijão.     

Depois de uma semana de protestos, com dezenas de milhares de pessoas nas ruas contra a nomeação de Sarkisian, no domingo a polícia deteve o líder da oposição e outros organizadores dos protestos, e ainda cerca de 200 manifestantes (Pashinian foi libertado após 24 horas de detenção que passou em isolamento, disse).

Mas mesmo com os organizadores detidos, dezenas de milhares de pessoas continuaram a manifestar-se, e com novidades: esta segunda-feira, mais de cem soldados, desarmados mas em serviço, juntaram-se aos protestos, abraçando os manifestantes, segundo a reportagem do jornalista da emissora Al-Jazira Robin Forrestier Walker, que notou também a presença de membros do clero.

O Ministério da Defesa anunciou “castigos duros” para estes militares, e apesar das manifestações serem pacíficas e marcadas por boa disposição, havia alguma tensão no ar. Esta dissipou-se com o anúncio de Sarkisian. “O movimento nas ruas está contra o meu mandato. Estou a cumprir o que pedem”, dizia ainda a sua declaração.

Um porta-voz confirmou a intenção do primeiro-ministro: “Penso que esta é uma clara demonstração da democracia em acção”, declarou Hovhannes Nikoghosyan, citado pela BBC. “Não é qualquer manifestação em qualquer lado do mundo que leva à demissão das autoridades.”

Nikol Pashinian voltou à rua para dizer aos manifestantes: “Toda a gente já percebeu que ganhámos!”. A multidão estava em júbilo.  

"Ainda bem que me enganei"

O próprio analista Thomas de Waal admite que não fazia este prognóstico. “Ainda bem que me enganei”, dizia logo no início da sua análise rápida da situação após o anúncio da demissão de Sargsyan numa série de tweets. Mas alertava logo que apesar dos protestos terem sido organizados por um líder da oposição, “não há oposição sistémica na Arménia: esta é uma multidão urbana, que não pertence a partidos, e que mal tem representação parlamentar”.

Mais: “A Arménia é de novo uma república parlamentar, os dinossauros do Partido Republicano no Parlamento são um obstáculo maior do que Serzh”. O seu cargo fica ocupado interinamente por um antigo chefe de Governo e aliado de Sarkisian, Karen Karapetyan. Tal como na Rússia, Ucrânia e Azerbaijão, continua, “o problema é uma fusão de alta política e grandes empresas”, um problema que tem mais de 20 anos.

“Os protestos na Arménia revelaram problemas socio-económicos e políticos que se acumulam há anos”, disse, citado pelo diário francês Le Monde, Iuri Navoian, da organização russo-arménia Diálogo, com sede em Moscovo.

Os manifestantes gritaram palavras de ordem contra Sarkisian, mas também contra a corrupção. Iuri Navoian nota, tal como De Waal, que a questão é maior do que só o primeiro-ministro: “A maioria da população não tem confiança nas autoridades, nem no sistema político em geral", sublinha. Na Arménia, “as autoridades e o povo são duas realidades nos antípodas uma da outra”.