Brasil: a militarização da justiça?

O Brasil entrou já em plena fase de transição autoritária, isto é, quando a gestão do sistema de poder que se diz democrático inclui práticas autoritárias e violentas.

O mais rápido dos processos Lava Jato, baseado segundo muitos juristas brasileiros, em provas muito frágeis (depoimentos feitos em regime de "delação premiada"), levou Lula à prisão. A rapidez do processo e a decisão de prender o réu logo depois de condenado numa 2.ª instância mas antes de ter esgotado todos os recursos na justiça tem tudo a ver com o facto de ele ser o candidato mais bem colocado em todas as sondagens para vencer nas eleições de outubro. Se ele triunfasse, fracassaria a campanha política, institucional, mediática e judicial para afastar o PT do poder, que forçou à demissão de uma Presidente democraticamente eleita (Dilma Rousseff) sem que sobre ela impendesse a acusação de prática de crime, e que agora quer impedir o regresso de Lula por via eleitoral. Como escreve a constitucionalista Eloísa Machado de Almeida, esta espécie de "agenda de moralização" assumida pela justiça está cheia de "decisões extravagantes [que] se mostraram, também, excecionais", adaptando-as casuisticamente: Aécio Neves (o candidato da direita derrotado por Dilma nas últimas eleições), "em idêntica situação à de Delcídio do Amaral [PT], não foi preso"; criou-se um "status de ministros sob medida para investigados do governo Michel Temer" que permite que estes não sejam presos ao contrário do que sucede com Lula (Nexojornal, 5.4.2018). É por isto que se fala de um golpe: afastada Dilma do poder, ofereceu-se a Temer o resto do mandato dela por cumprir (2016-18); percebendo que Lula poderia ganhar as eleições, era necessário prendê-lo. O PT paga hoje um preço que não pagam os seus antigos aliados políticos, com os quais achou ser inevitável aliar-se para conseguir chegar ao poder em 2003. Culpado ou não de corrupção, o operário paulista nascido no Nordeste (dois dos estatutos mais desprezados pela classe média-alta brasileira) que em 2009 se vangloriava de que "nunca [os empresários] ganharam tanto dinheiro como no meu governo", deixou-se armadilhar por um sistema político e social que, afinal, não ajudou a mudar e foi apanhado pela vaga de direitização radical da América Latina, que começou pela Venezuela, onde ainda não triunfou, passou pela Argentina, Brasil, Chile e Colômbia, e esbarrou na resistência da esquerda no Equador e na Bolívia.

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O mais rápido dos processos Lava Jato, baseado segundo muitos juristas brasileiros, em provas muito frágeis (depoimentos feitos em regime de "delação premiada"), levou Lula à prisão. A rapidez do processo e a decisão de prender o réu logo depois de condenado numa 2.ª instância mas antes de ter esgotado todos os recursos na justiça tem tudo a ver com o facto de ele ser o candidato mais bem colocado em todas as sondagens para vencer nas eleições de outubro. Se ele triunfasse, fracassaria a campanha política, institucional, mediática e judicial para afastar o PT do poder, que forçou à demissão de uma Presidente democraticamente eleita (Dilma Rousseff) sem que sobre ela impendesse a acusação de prática de crime, e que agora quer impedir o regresso de Lula por via eleitoral. Como escreve a constitucionalista Eloísa Machado de Almeida, esta espécie de "agenda de moralização" assumida pela justiça está cheia de "decisões extravagantes [que] se mostraram, também, excecionais", adaptando-as casuisticamente: Aécio Neves (o candidato da direita derrotado por Dilma nas últimas eleições), "em idêntica situação à de Delcídio do Amaral [PT], não foi preso"; criou-se um "status de ministros sob medida para investigados do governo Michel Temer" que permite que estes não sejam presos ao contrário do que sucede com Lula (Nexojornal, 5.4.2018). É por isto que se fala de um golpe: afastada Dilma do poder, ofereceu-se a Temer o resto do mandato dela por cumprir (2016-18); percebendo que Lula poderia ganhar as eleições, era necessário prendê-lo. O PT paga hoje um preço que não pagam os seus antigos aliados políticos, com os quais achou ser inevitável aliar-se para conseguir chegar ao poder em 2003. Culpado ou não de corrupção, o operário paulista nascido no Nordeste (dois dos estatutos mais desprezados pela classe média-alta brasileira) que em 2009 se vangloriava de que "nunca [os empresários] ganharam tanto dinheiro como no meu governo", deixou-se armadilhar por um sistema político e social que, afinal, não ajudou a mudar e foi apanhado pela vaga de direitização radical da América Latina, que começou pela Venezuela, onde ainda não triunfou, passou pela Argentina, Brasil, Chile e Colômbia, e esbarrou na resistência da esquerda no Equador e na Bolívia.

O Brasil entrou já em plena fase de transição autoritária, isto é, quando a gestão do sistema de poder que se diz democrático inclui práticas autoritárias e violentas que, com aparência de legalidade (normas que desafiam os limites da constitucionalidade e criam arbítrio) ou sem ela (violência praticada impunemente à margem da lei sobre ativistas políticos ou qualquer cidadão por forma a intimidar o conjunto da sociedade), mudam no essencial a natureza democrática do regime. Comecemos pela militarização da política. Há anos que se discute a "judicialização" da política, ou a "politização" da justiça (e esta é, afinal, tão antiga quanto os sistemas de justiça...), mas, no caso brasileiro, passámos ao lado da (re)entrada de chofre dos militares na vida política como sublinha Emílio Meyer, da Univ. Federal de Minas Gerais ("Militarization of Politics in Brazil", 5.4.2018, in https://ssrn.com/; agradeço a indicação de Luciano Abade). Dias antes da votação no Supremo Tribunal Federal (STF), o Comandante do Exército, gen. Eduardo Villas Bôas, usou o Twitter para advertir indiretamente os juízes contra "a impunidade" de Lula, numa ameaça gravíssima logo apoiada por vários outros comandos militares que condicionou uma sentença tomada por empate com voto de qualidade. Há meses, o Comandante já tinha deixado impune, esse sim, o gen. António Mourão quando, contra a Constituição, este apelou a que as Forças Armadas se encarregassem da "limpeza" da vida política e elogiou publicamente o torturador de Dilma, o cor. Brilhante Ustra, copiando o gesto indignante de Jair Bolsonaro, deputado federal e militar, que em 2016 dedicou a Ustra o seu voto a favor do impeachment. Bolsonaro candidato da extrema-direita que aparece em 2.º lugar nas sondagens, atrás de Lula, tem agora o caminho para a Presidência facilitado.

Em fevereiro, Villas Bôas exigiu ainda que, no âmbito da ocupação militar do Rio de Janeiro decretada por Temer, os militares tivessem a "garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade" no futuro - precisamente o que denunciou Marielle Franco logo antes de ser assassinada. Provavelmente, tem pouco com que se preocupar: "os juízes e os tribunais brasileiros têm recusado sistematicamente a abertura de processos a pedido de procuradores federais para julgar crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura de 1964-85" (Meyer).