Cozinha simples e natural na toca do mestre Arnaldo

Um regresso ao tempo em que a comida era apenas produto e sabor. Arnaldo Azevedo é um desses mestres dos fogões da velha escola, orgulhoso e sabedor, que faz na sua cozinha apenas o que quer e aquilo de que gosta.

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Adriano Miranda

É quase como voltar atrás no tempo culinário. Um regresso ao tempo em que a comida era apenas produto e sabor, feita no tacho e no forno, e em que quase não se usavam os frigoríficos. Produtos do dia e seleccionados segundo as necessidades e o critério do cozinheiro.

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É quase como voltar atrás no tempo culinário. Um regresso ao tempo em que a comida era apenas produto e sabor, feita no tacho e no forno, e em que quase não se usavam os frigoríficos. Produtos do dia e seleccionados segundo as necessidades e o critério do cozinheiro.

Arnaldo Azevedo é um desses mestres dos fogões da velha escola, orgulhoso e sabedor daquilo que faz. A um tempo rezingão e bem-humurado, que faz apenas o que quer e aquilo de que gosta, sem cedências ou contemplações. Metido na sua toca, como é costume dizer-se, mas, neste caso, uma toca de sabores que se revela saborosa e irresistível a cada pormenor.

Há que dizer que a Toca da Formiga é, claramente, um restaurante da velha escola. Por aquilo que faz e a forma como cozinha, que privilegia o sabor e genuinidade dos produtos à estética, técnicas ou aditivos, mas também pelo serviço simples e focado apenas no essencial da função.

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Adriano Miranda

Manda a cozinha — e o cozinheiro —, com produtos do dia e uma carta que depende da oferta da lota e do mercado, e que é também diariamente manuscrita pelo próprio. Não há máquinas ou computadores, e o estilo old fashion é igualmente assumido com a conta final rabiscada nas folhas do velho livro de facturas e arrancadas pelo picotado. E, claro, neste contexto também não há Multibanco ou outros meios electrónicos de pagamento, pelo que convém ir convenientemente municiado para saldar a conta em numerário.

Há que ir muito atento à localização, já que não há quaisquer placas ou indicações, mesmo no exterior da moradia do bairro da Formiga, em Ermesinde, onde há cerca de quatro décadas Arnaldo Azevedo instalou o seu restaurante. Apenas a luz interior denuncia o espaço que ocupa o primeiro piso numa sequência de moradias de idênticas características, ao qual se acede por duplo lanço de escadinhas exteriores.

Mobiliário de época em estilo simples, luz sem grande intensidade e um balcão a separar a cozinha que funciona ao fundo da sala com capacidade para acolher até 40 comensais. Sobre as mesas, toalhas e guardanapos de algodão branco e, junto ao balcão, umas cestinhas insinuando algumas preciosidades vínicas que foram acompanhando o passar dos anos da casa.

Para o almoço do dia — o restaurante não serve jantares — o cozinheiro propunha “lampreia à bordalesa” (25€), “filetes de pescada”, “arroz caldoso de garoupa”, “caçarola de robalo”, “polvo laminado em azeite, alho e orégãos” (tudo a 13,50€/25€, para meia ou dose inteira), e “moqueca de camarão” (15/20€). Nas carnes, o “bife do vazio encebolado” alinhava com “arroz de entrecosto em vinha d’alhos”, “naco de boi com Queijo da Serra”, “porco bísaro com camarão” e “lombo de boi na frigideira”, com preçário a acompanhar o dos peixes.

Pãezinhos quentes e estaladiços logo colocados sobre a mesa, a que se seguiu um pratinho de petingas (5€) de sabor fresco e crocantes, que se devoraram inteiras para começar da melhor maneira.

Pediram-se os filetes, a garoupa e o polvo. Cortados dos lombos da pescada enquanto se saboreavam as sardinhas, os filetes de pescada fritaram com um polme de milho que acrescentava crocância ao sabor fresco e intenso do peixe. Primorosas também as postas de garoupa, que chegaram à mesa no tacho onde cozinharam. Cozedura rigorosa num caldo que impregnou com o sabor do peixe o arroz de grão firme que lhe fazia companhia e mereceu aprovação unânime.

Também o polvo, de tamanho médio e tentáculos laminados longitudinalmente, veio à mesa da sertã onde foi ao fogão. Evidente qualidade no trabalho culinário a destacar o sabor e textura firme e macia do polvo, a combinar com sabedoria de mestre com a intensidade do alho, azeite e orégãos e o amido de batata cozida para tudo equilibrar.

Nas carnes, o “bife do vazio encebolado” (13,50€, meia dose) é uma obra de arte da cozinha simples e saborosa. Posta de corte criterioso, marcada no ponto pelo calor e a fixar suculência, sabor e textura arrebatadoras. O adocicado da cebola equilibra com um vinagre de qualidade — mas há que saber procurá-lo — e o conjunto consegue até satisfazer (pelos aromas) as mesas envolventes. Sabedoria de mestre: acompanhou com batatas em rodelas fritas em azeite e sem sal para que em nada seja perturbada a qualidade dos sabores. 

No “arroz de entrecosto” (13,50€), o segredo parece estar mesmo na qualidade — e duração — da vinha d’alhos, a transmitir intensidade de sabor. Já o arroz mostrou a mesma característica de grão firme e escassa envolvência de goma do caldoso da garoupa, que pode derivar de uma cozedura antecipada.

Foi já entre a gulodice e o deslumbramento que se provou ainda o “lombo de boi na frigideira” (14,50€). Para terminar em apoteose e confirmar que na base da boa cozinha está a qualidade do produto. Depois, é cozinhar da forma mais simples e natural e aí é que apenas alguns fazem a diferença.

Também na doçaria esta toca do mestre Arnaldo parece fazer a diferença. Pelo menos a julgar pelo aveludado do pudim abade de Priscos e cremosidade do doce de chila, amêndoa e creme de ovos (3,50€ cada) que definitivamente convenceram.

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Adriano Miranda

Uma palavra ainda para os vinhos que acompanharam esta espécie recuo no tempo culinário, de sabores cativantes e envolvência emotiva. Um regresso à forma mais simples e natural também com dois extraordinários e sedutores vinhos da viragem do século. O Vila da Galeira 1998, um Douro da Casa Barros, que, a par da elegância e harmonia, mostrou também ainda frescura, e até algum tanino e fruta; e o Pontval 2002, do Alentejo, com mais corpo e vigor mas igualmente de uma frescura digestiva exemplar.

Dois vinhos de outro tempo, a mostrar que, também num estilo mais simples e natural, em que corpo e estrutura não eram a matriz principal, se faziam vinhos gastronómicos e duradouros. O volume de álcool contido (12% no Vilar da Galeira, 13,5% no Pontval), frescura e elegância fazem destes vinhos dois casos verdadeiramente exemplares dessa sabedoria do fazer simples e natural.

E é assim que a visita à Toca da Formiga tem todos os ingredientes para se converter numa interessante experiência gastronómica. Desde que não se vá à espera de modernices ou mordomias supérfluas. Apenas de coisas simples e saborosas.