Voluntariado, experiência cultural ou trabalho ilegal?

Os sites que trocam tarefas por estadia têm milhares de utilizadores em Portugal. Plataformas e utilizadores falam em voluntariado, especialistas e entidades governamentais recusam a definição e abrem caminho à actividade laboral não declarada. Em alguns casos, são “trabalho informal, clandestino”

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Mário Lopes Pereira

A ideia de base é simples: a troca de algumas horas de trabalho pela estadia num local, feita por acordo preestabelecido entre as partes, mutuamente beneficiária e sem dinheiro envolvido. Subjacente ao conceito está ainda a partilha de experiências, o intercâmbio cultural, a aquisição de novos conhecimentos e de competências, bem como uma mistura entre trabalho ou voluntariado e turismo ou lazer.

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A ideia de base é simples: a troca de algumas horas de trabalho pela estadia num local, feita por acordo preestabelecido entre as partes, mutuamente beneficiária e sem dinheiro envolvido. Subjacente ao conceito está ainda a partilha de experiências, o intercâmbio cultural, a aquisição de novos conhecimentos e de competências, bem como uma mistura entre trabalho ou voluntariado e turismo ou lazer.

Se o enquadramento genérico é fácil de estabelecer, surgem, em paralelo, todo o tipo de nuances e de zonas cinzentas. O acordo entre “hosts” e “voluntários” implica quantas horas de trabalho por dia? Em troca de que tipo de tarefas? Essas tarefas são realizadas para ajudar ou para substituir funcionários? Quem sai beneficiado? E se as condições forem exactamente iguais, estamos a falar do mesmo quando estas integram empresas, famílias ou associações? Afinal, trata-se de voluntariado, de experiências culturais ou de trabalho ilegal? Os especialistas ouvidos pelo P2 defendem que, apesar de a premissa inicial ser a mesma, podemos estar a falar de situações muito diferentes consoante o contexto, pelo que cada caso deve ser analisado individualmente. Certo é que, para a maioria, a dúvida dificilmente se coloca quando falamos de situações integradas em entidades que visem o lucro.

“Os trabalhos (a tempo parcial) efectuados em troca de estadia, como são a Workaway, o Worldpackers ou a WWOOF Portugal, não se enquadram em acções de voluntariado”, diz ao P2 uma fonte oficial do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. De acordo com a legislação em vigor, este corresponde ao “conjunto de acções de interesse social e comunitário realizadas de forma desinteressada, ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade, desenvolvidas sem fins lucrativos”. Algo que, segundo o ministério, não acontece nestes casos. “As tarefas a desenvolver previstas nos programas concorrem para o funcionamento das entidades, isto é, são tarefas e funções necessárias à prossecução da actividade das próprias entidades e não ao serviço de indivíduos ou da comunidade”, refere a tutela. “Para além disso, o voluntariado pressupõe que este seja realizado de forma desinteressada e não recompensado em dinheiro ou por outras formas, como parece acontecer nos casos em apreço.”

Susana Quiroga, vice-presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado, faz a mesma leitura. “Isso não é voluntariado”, refuta. “Opomo-nos a actividades que contribuam para um fim lucrativo de uma empresa, quinta ou organização. Não é essa a lógica do voluntariado — nem aqui nem em lado nenhum”, reitera a responsável. “O voluntariado não pode servir para substituir mão-de-obra.” Se se trata da satisfação de uma necessidade primária da entidade, esse trabalho deve ser pago, sublinha.

Há vários anos que a Confederação Portuguesa do Voluntariado luta pelo alargamento do conceito da actual legislação, em vigor desde 1998, por considerá-lo “limitativo demais”. Mas mesmo numa visão mais alargada do conceito, “há situações que não têm enquadramento”. “São outra coisa qualquer: uma relação comercial, uma amizade ou procura individual de experiências, que não traz mais-valia absolutamente nenhuma para terceiros.” Para Susana Quiroga, o que define o voluntariado “é a questão da solidariedade e do bem comum, da mais-valia social” que ele traz. Chamar “voluntariado” a tudo o resto “é abusivo”, defende.

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Jan Kallnbach, "voluntário" no Mimhostel, no Porto Paulo Pimenta

"E o Estado a ver navios

Nos termos do Código do Trabalho, “estamos perante uma relação de trabalho quando uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas, existindo a presunção legal de existência de contrato de trabalho quando há prestação de actividade em condições características [do mesmo]”, lembra o ministério na mesma resposta por escrito ao P2. Segundo o artigo 12.º, basta que “se verifiquem algumas” dessas características. Ou seja, não é necessário existir um salário, por exemplo, para que a relação seja considerada um contrato de trabalho perante a lei, mesmo que este não tenha sido formalmente declarado. E, caso se esteja efectivamente perante uma relação de trabalho, a legislação proíbe que a retribuição seja feita apenas em espécie. Diz o artigo 259.º que “o valor das prestações retributivas não pecuniárias não pode exceder o da parte em dinheiro”.

João Santos, especialista em Direito do Trabalho, assume que “nunca tinha ouvido falar” das "trocas" oferecidas por plataformas como a Workaway ou a HelpX. Muito menos que era “uma actividade já tão profissionalizada”. Mas, olhando para as diferentes páginas, tem dúvidas de que muitas das situações enunciadas não fujam à lei. “Se isso entra na actividade corrente da organização e se a organização, por exemplo, se visse obrigada a contratar pessoas caso este modo de trabalho não existisse porque precisa de alguém que exerça aquela actividade, não vejo porque, à partida, isso não deva ser configurado como uma relação de trabalho ou, no mínimo, como uma relação da qual resulte uma retribuição para quem está a trabalhar, que pode ser uma prestação de serviços”, argumenta.

Para o advogado, a falta de capacidade económica para empregar trabalhadores não pode ser justificação. “Isso é um problema do business plan, não podem é estar a fugir à lei e aos impostos”, defende. Nem o acordo e satisfação entre as duas partes é suficiente. “Isto não se joga só ao nível das partes, há um interesse público por trás disto, que é um interesse fiscal e de protecção dos trabalhadores.”

No entender de Fausto Leite, outro especialista no Direito do Trabalho, trata-se de “trabalho informal, clandestino”. Se é uma actividade económica lucrativa, está “sujeita a regras”, nomeadamente a existência de seguro contra acidentes de trabalho (em muitos casos, os anúncios referem que o seguro é obrigatório e da responsabilidade do “voluntário”), pagamento da retribuição e das contribuições para a Segurança Social. “Senão, estão os outros a trabalhar e a fazer descontos e depois há um grupo que passa ao lado, pelos pingos da chuva. E o Estado a ver navios”, ironiza João Santos.

Segundo fonte oficial, tanto o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, como a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) “estão atentos a esta realidade em particular, mas também às novas actividades que derivam da chamada economia ‘partilhada’ ou ‘colaborativa’”. O ministério “acompanha o debate internacional em torno destas matérias, que vai no sentido de se caminhar para a regulação destas actividades” e . Segundo a mesma fonte, nenhuma das entidades governativas recebeu “quaisquer denúncias relativas a estas matérias”. Por seu lado, contactada pelo P2, a ACT acrescenta que está a acompanhar todas as situações que “se enquadrem nas suas competências”. Mas não dispõe de “dados quantitativos desagregados” sobre esta actividade.

E as plataformas?

“Quando a Uber apareceu, deu um pontapé na porta e entrou. Depois é que se andou a regular”, compara João Santos. Toda a lógica e construção destas plataformas assemelha-se a outras, já reconhecidas e fortemente implementadas em diferentes áreas, como a Uber, o Airbnb ou o Couchsurfing. Mas o advogado aponta outra semelhança: “É muito parecido, senão igual, àquilo que fazem as empresas de trabalho temporário.” Existe “uma triangulação” muito semelhante, defende, “entre as plataformas, quem oferece o trabalho e quem está disponível para o fazer”. Se for o caso, é uma actividade “que só pode ser exercida por quem tem alvará”, o que faria com que os próprios sites “também pudessem estar a violar a lei”.

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Faia Collective Ricardo Lopes

De todas as plataformas referidas, apenas a WWOOF Portugal está registada no país, enquanto associação sem fins lucrativos. Faz parte da Confederação Portuguesa do Voluntariado. “Enquadra-se naquilo que é o conceito mais alargado do voluntariado”, justifica Susana Quiroga, vice-presidente da confederação. “É uma organização que não tem fins lucrativos e cujas finalidades são o desenvolvimento de questões ligadas ao cultivo ecológico, biológico e afins”, define. Rodrigo Rocha, presidente da WWOOF Portugal, não tem dúvidas: aquilo que promovem nas quintas é voluntariado e não trabalho. “Vem dar-te uma ajuda mas também tem expectativas do teu lado. Requer atenção, conversa, ensinamento, um horário reduzido e uma aproximação não profissional”, defende este brasileiro, a viver em Portugal há 24 anos.

Rocha demarca-se das outras plataformas. Na WWOOF, “o ‘voluntário’ tem uma formação informal gratuita e aprende de forma prática sobre agricultura biológica, ecoconstrução ou energia alternativa”. Existe uma “parte de turismo”, mas a associação tenta “promover outra coisa”. Por isso, não discorda da existência de empresas agrícolas na plataforma. “Nenhum agricultor comercial é maluco ao ponto de confiar em ‘voluntários’ como base de trabalho, mas pode ser uma oportunidade interessante para quem quer seguir profissionalmente o mundo da agricultura biológica.” As outras organizações, que o presidente da WWOOF define como “empresas”, “aceitam ‘voluntários’ em tudo o que é possível e isso é um risco enorme para as pessoas”.

A “função legal” da associação é “colocar em contacto os ‘voluntários’ e as quintas”. Tal como nas outras plataformas, o resto é responsabilidade dos utilizadores, reconhece Rocha. São as quintas e os “voluntários” que têm a responsabilidade de cumprir as normas da associação e da legislação portuguesa. “Mas, de um ponto de vista informal, se há um problema, nós estamos lá, porque vivemos cá, conhecemos as leis portuguesas e as pessoas [envolvidas] e vamos agir. Não se pode esperar o mesmo de uma empresa sediada em Hong Kong”, ironiza.

Criada no Reino Unido em 2002, a sede do Workaway mudou-se, entretanto, para aquela região administrativa especial da China. Nos termos e condições do site, há apenas uma entrada relativa ao assunto. “Qualquer disputa que possa surgir entre ti e nós na relação com o Workaway será ouvida exclusivamente dentro da jurisdição dos tribunais de Hong Kong, a não ser que ambos acordemos o contrário.” Contactámos esta plataforma para vários esclarecimentos, mas até ao fecho desta edição não recebemos qualquer resposta.

Ao contrário de França, onde a fiscalização numa quinta distinguiu os trabalhadores com contrato legal dos “voluntários”, definindo-os como trabalhadores em situação ilegal, nunca houve qualquer problema com as autoridades portuguesas nas quintas inscritas na WWOOF Portugal, fundada por Rodrigo Rocha em 2009. “Nunca tivemos problemas legais, porque nós tentamos fazer tudo, na medida do nosso conhecimento, de forma legal e com boa intenção.”