Por que é que os abutres de Espanha não vêm para Portugal?

Mais de 70 abutres espanhóis perto da fronteira com Portugal foram seguidos pelos cientistas. Percebeu-se que quase nunca passavam para o lado português: uma das razões apontadas para tal é que tinham menos alimentos, por causa de políticas comunitárias mais rígidas praticadas em Portugal.

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Abutres em Espanha Manuela de la Riva

Nem sempre vemos os abutres com bons olhos. E até ouvimos muitas histórias onde eles são os maus da fita. Afinal, são aves que se alimentam de animais mortos nos campos. Mas a verdade é que contribuem para o equilíbrio do ecossistema. Por isso, cientistas espanhóis e um português decidiram seguir o rasto de 71 abutres espanhóis perto da fronteira com Portugal para saber onde se alimentavam. Concluíram que raramente passavam para o país vizinho e que isso acontecia porque as políticas europeias aplicadas em Portugal são mais rígidas do que as espanholas, originando menos comida nos campos. Para que haja mais carcaças de animais para as aves necrófagas, acaba de ser publicado este mês em Portugal um manual com as regras para deixar essas carcaças em campos com e sem vedação.

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Nem sempre vemos os abutres com bons olhos. E até ouvimos muitas histórias onde eles são os maus da fita. Afinal, são aves que se alimentam de animais mortos nos campos. Mas a verdade é que contribuem para o equilíbrio do ecossistema. Por isso, cientistas espanhóis e um português decidiram seguir o rasto de 71 abutres espanhóis perto da fronteira com Portugal para saber onde se alimentavam. Concluíram que raramente passavam para o país vizinho e que isso acontecia porque as políticas europeias aplicadas em Portugal são mais rígidas do que as espanholas, originando menos comida nos campos. Para que haja mais carcaças de animais para as aves necrófagas, acaba de ser publicado este mês em Portugal um manual com as regras para deixar essas carcaças em campos com e sem vedação.

No céu português voam três espécies de abutres: o britango (Neophron percnopterus), a espécie mais pequena; o grifo (Gyps fulvus), a espécie mais comum; e o abutre-preto (Aegypius monachus), a maior e a mais ameaçada.

Se estas espécies que voam em Portugal também estão agora mais perto da fronteira com Espanha, no início do século XIX a sua distribuição era mais alargada no território português. O britango já nidificou nas serras da Arrábida e de Sintra, o grifo fazia-o desde o vale do Guadiana até às serras do centro e do Norte do país, e o abutre-preto estendia-se do Sul até à serra da Estrela. Até o rei D. Carlos I os ilustrou para o seu Catalogo Illustrado das Aves em Portugal, publicado em dois volumes em 1903 e 1907. Desenhou o grifo, o abutre-preto e o britango e referiu como eram comuns em muitos pontos do país.

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Grifo desenhado pelo rei D.Carlos I Catalogo Illustrado das Aves em Portugal

Agora tudo mudou. O abutre-preto já chegou a estar extinto em Portugal. “Em 1985, depois de um intenso trabalho de campo, [o biólogo] Luís Palma lançou o grito de alerta: os abutres-negros estão extintos!”, conta-se no livro de 2005 Abutres de Portugal e Espanha, de Paulo Caetano. Tem vindo a aumentar ligeiramente e já há cerca de dez casais a nidificarem em Portugal, mas continua “criticamente em perigo” no país e, a nível global, tem o estatuto de “quase ameaçado” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). O britango está classificado “em perigo” a nível nacional e internacional e há poucas centenas de casais em Portugal. Por fim, o grifo está “quase ameaçado” no país, onde tem colónias a reproduzirem-se, mas a nível internacional tem o estatuto de “pouco preocupante”.

Perigo do diclofenaco

Os abutres são equilibradores dos ecossistemas. “Ao alimentar-se de animais que morrem, podem evitar o alastramento de doenças”, frisa Joaquim Teodósio, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), acrescentando que os abutres enfrentam perigos como o diclofenaco. Este anti-inflamatório usado para tratar gado bovino ainda não está autorizado em Portugal (em Espanha já está), mas, mesmo assim, a possibilidade da sua aprovação tem “assustado” ambientalistas e cientistas. O diclofenaco pode ser tóxico para os abutres, podendo matá-los por falência renal dias depois de terem comido carne (das carcaças) contaminada com este medicamento. “Existem outras alternativas [como o meloxicam] que não têm efeitos sobre os abutres”, apela Joaquim Teodósio. Estas aves ainda estão ameaçadas pelo abate ilegal, o choque com as linhas eléctricas ou a falta de alimentos.

Por isso, cientistas espanhóis e o português Pedro Beja (do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto) quiseram perceber o movimento dos abutres. Para tal, seguiram o rasto de 60 grifos e 11 abutres-pretos através de GPS entre 2014 e 2016. “Apenas seis grifos e sete abutres-pretos visitaram o lado português da área de estudo”, lê-se num artigo científico na revista Biological Conservation. “Percebemos que o grifo e o abutre-preto de Espanha raramente voam além da fronteira.” E Pedro Beja destaca: “Quase fazem os contornos [da fronteira]. Parece uma barreira.”

Por que acontece isso? “Começou-se a perceber que havia grandes diferenças na disponibilidade de alimento de um lado e do outro. Nos regimes mais humanizados, como Portugal e Espanha, os abutres comem gado que morreu e é deixado no campo”, explica o cientista.

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Abutres em Espanha Manuela de la Riva

Em 2001, depois da crise da doença das vacas loucas (BSE), a União Europeia proibiu o abandono de carcaças de gado nos campos. Houve uma directiva que os países tiveram de cumprir. E os cientistas concluíram que agora há menos alimentos em Portugal porque o país cumpriu estas regras de forma mais rígida do que Espanha. “Os nossos resultados realçam a necessidade de avaliar as consequências do potencial ecológico da implementação de políticas sanitárias rígidas, especialmente quando afectam altamente a mobilidade de espécies ameaçadas como os abutres”, refere-se no artigo.

“Verifica-se, de facto, que a utilização do território espanhol por parte das aves é mais intensa, quando comparada com o território português, o que resultará certamente da diferente disponibilidade de alimento”, reconhece Ana Zúquete, directora do Departamento de Recursos Naturais e Conservação da Natureza do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). A disponibilidade do alimento pode estar ainda relacionada, acrescenta, com “diferenças nos regimes de actividade agro-pastoril” ou com a “implementação das restrições veterinárias à disponibilidade das carcaças”. “A problemática de conservação das aves de hábitos necrófagos relaciona-se, directamente, com a estreita dependência que [estas aves] actualmente apresentam das actividades humanas praticadas em moldes extensivos.”

A dependência destas aves necrófagas das actividades começou com a revolução neolítica (há cerca de dez mil anos) e a progressiva substituição das manadas de herbívoros selvagens pelos rebanhos de ungulados e outras espécies domésticas. Assim, na Península Ibérica, os abutres foram adaptando a sua alimentação aos agro-sistemas extensivos. “Desta forma, qualquer alteração repentina neste sistema de fornecimento de alimento, em termos de regularidade, quantidade e qualidade de biomassa, pode de facto resultar num desequilíbrio e acarretar alterações comportamentais e carências alimentares insustentáveis para as populações destas espécies, particularmente graves em espécies com uma situação demográfica vulnerável, como é o caso [destas aves]”, diz Ana Zúquete.

Mesmo assim, Samuel Infante, da associação ambientalista Quercus, aponta incongruências no estudo: “Deviam ter sido marcados abutres reprodutores em Portugal e não só em Espanha. Os dados de monitorização são de um período curto de tempo e de alguns juvenis que têm comportamentos diferentes [dos dos adultos].”

Mas voltemos a 2001, quando a “política rígida” foi posta em prática em Portugal, e vejamos como pode ter tirado alimento aos abutres. “Os animais mortos nas explorações agrícolas tinham de ser analisados para se ter a certeza de que tinham morrido ou não com essa doença [BSE]. Estávamos numa época de grande crise, o país estava embargado comercialmente e não podíamos exportar produtos de ruminantes”, conta Fernando Bernardo, director-geral de Alimentação e Veterinária. Como tal, criou-se o Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos na Exploração (Sirca). “Entre 2001 e 2005, o sistema foi-se alargando, melhorando e demonstrámos à Comissão Europeia que não havia qualquer cadáver que ficasse sem ser analisado. Assim, foi possível levantar o embargo.”

E como funciona? Quando os animais morrem, os proprietários telefonam para o centro de atendimento telefónico e uma carrinha vai buscar as carcaças. São levadas para unidades de transformação de subprodutos animais: nos concelhos de Coruche e em São João da Madeira.

O enterramento de animais só é permitido em zonas remotas e, para isso, tem de ser autorizado. “Temos um manual de instruções em que indicamos qual é a profundidade e o espaço entre o cadáver e a superfície. Essa possibilidade existiu sempre”, frisa Fernando Bernardo.

Em 2017, foram recolhidos quase 88 mil bovinos, quase 12 mil ovinos e caprinos e cerca de 3456 toneladas de suínos. O orçamento máximo do Sirca é de 12 milhões de euros por ano. “Esta actividade não serve para dar lucro. Libertamos o espaço rural onde os animais são criados de uma carga potencial de perigo biológico”, diz Fernando Bernardo.

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Abutres em campos de alimentação para aves necrófagas na Herdade da Contenda, em Moura, Alentejo LPN/LIFE Habitat Lince Abutre

Além disso, há campos de alimentação para aves necrófagas – espaços vedados para garantir que não lhes vai faltar comida. O ICNF analisa se se justifica a existência de um campo e a Direcção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) autoriza-o. Neste momento, há 24 campos (gerido por empresas agrícolas e associações ambientalistas) e são deixadas lá 70 toneladas de cadáveres por ano.

Mas o Sirca tem sido criticado. “Não faz sentido nos moldes [de reciclagem industrial] em que está pensado”, aponta Paulo Lucas, da associação Zero, acrescentando que se emite muito dióxido de carbono com as deslocações. “Seria desejável que a reciclagem natural passasse a fazer parte do Sirca, isto é, sempre que morresse um animal numa área próxima de um ou mais campos de alimentação fosse equacionada a possibilidade de o cadáver ser encaminhado para as aves necrófagas”, sugere. “Não se trataria de uma obrigatoriedade, já que implicaria analisar prévia e informaticamente se a deposição do animal poderia ou não ser efectuada.”

Um plano de acção na gaveta

Mas a partir de 2011 um regulamento comunitário veio autorizar (com certos requisitos) que os cadáveres fossem deixados nos campos não vedados para as aves necrófagas. Com estas novas regras, em Espanha tudo se tornou mais fácil. “Os requisitos para deixar as carcaças nos campos são agora mais flexíveis. Geralmente, basta deixá-los em sítios autorizados e que têm de cumprir requisitos, como ficar longe o suficiente de corpos de água ou de aeroportos”, explica o principal autor do estudo Eneko Arrondo, da Estação Biológica de Doñana, em Espanha.

Com esse mesmo objectivo, em Portugal acaba de ser publicado o manual com as regras para a aprovação de campos (vedados e não vedados) de alimentação para aves necrófagas. Ainda não há nenhum pedido, que pode ser feito pelos donos dos terrenos, explica Pedro Vieira, chefe da Divisão de Identificação Registo e Movimentação Animal da DGAV. A Quercus, que tinha criticado o Sirca, já congratulou esta decisão.

E Eduardo Santos, da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), destaca ainda a necessidade da publicação do “Plano Nacional para a Conservação das Aves Necrófagas”, que identifica medidas para a conservação das aves necrófagas em Portugal. O documento esteve em discussão pública em 2015 e o ICNF informou o PÚBLICO que será publicado em breve.

Elaborado pelo ICNF e por técnicos externos, este plano tem 18 medidas e cinco linhas de actuação, como o estímulo à nidificação das aves necrófagas e a redução da sua morte não natural. Nele consta, por exemplo, as áreas onde se devem alimentar estas aves. “[O plano] permitiria que certos aspectos novos da legislação comunitária fossem mais facilmente aplicados em Portugal”, considera Eduardo Santos, que participou na elaboração do plano. Já Samuel Infante aponta que faltam “recursos financeiros” para que seja posto em prática. Também a Zero critica o facto de este plano estar “esquecido”.

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Abutre-preto LPN/LIFE Habitat Lince Abutre

E o que tem sido feito pela conservação dos abutres? Até finais dos anos 90, quase todos os sítios de nidificação não tinham um estatuto de protecção. Isso mudou com o alargamento da Rede Nacional de Áreas Protegidas, como a criação dos parques naturais do Douro e do Tejo Internacional. Estão também em curso projectos como o Life Rupis, com coordenação da SPEA, na zona transfronteiriça do Douro, onde há acções de conservação do britango e da águia-perdigueira, como o controlo de venenos.

Também a LPN teve um projecto sobre o abutre-preto (e o lince ibérico) que terminou em 2014: “Ao fim de 40 anos sem se reproduzirem no Alentejo, casais de abutres-pretos instalaram-se nos ninhos artificiais que criámos”, conta Eduardo Santos. Agora todos os anos se têm reproduzido. Há ainda um novo projecto entre a LPN e Espanha para promover o turismo de aves, como os abutres-pretos. Tudo isto para proteger esta ave que, um dia, já esteve extinta em Portugal.