Tristão, not Tristan

Maria João Gaspar e José Filipe de la Fuente estão a bordo do Royal Mail Ship. Este é o relato da última viagem do navio até Tristão da Cunha, ilha perdida no Atlântico Sul.

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É provável que a maioria dos portugueses nunca tenha ouvido falar de Santa Helena, Ascensão ou Tristão da Cunha. Ou talvez alguns lisboetas associem este último nome a magníficos palmiers, dada a proximidade do Café Careca com uma rua assim chamada, no Restelo. Os portugueses foram os primeiros a chegar a estas ilhas, mas esse facto não passa de uma nota de rodapé na História dos Descobrimentos.

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É provável que a maioria dos portugueses nunca tenha ouvido falar de Santa Helena, Ascensão ou Tristão da Cunha. Ou talvez alguns lisboetas associem este último nome a magníficos palmiers, dada a proximidade do Café Careca com uma rua assim chamada, no Restelo. Os portugueses foram os primeiros a chegar a estas ilhas, mas esse facto não passa de uma nota de rodapé na História dos Descobrimentos.

A ligação nacional a um dos últimos territórios ultramarinos britânicos está directamente relacionada com a Carreira da Índia, a viagem anual entre Lisboa e os portos do Oriente, iniciada logo após a descoberta do caminho marítimo, em 1497, e cuja rota se manteve até à abertura do Canal do Suez, na segunda metade do século XIX. No início do seculo XVI, as naus portuguesas transportavam cerca de 500 toneladas de carga e mais de meio milhar de pessoas, entre tripulação e soldados. Havia também passageiros, desde nobres que assumiam funções administrativas nos novos territórios, até religiosos, negociantes ou aventureiros que tentavam a sorte a Oriente.

A viagem demorava cerca de seis meses, podendo chegar a dez quando a meteorologia não colaborava, e a mortalidade era elevada devido à falta de higiene e assistência médica e à alimentação deficiente em produtos frescos, o que resultava frequentemente em casos de escorbuto, devido à carência de vitamina C. Centenas de pessoas, forçadas a conviver durante meses num espaço exíguo e desconfortável, constituíam uma situação potencialmente explosiva, que a liderança da nau tentava amenizar com o que hoje se designaria de programa de entretenimento a bordo, e que incluía distracções como jogos e representações teatrais. Tal como a tripulação do RMS Santa Helena continua a fazer hoje, embora entreter uma centena de pessoas, particularmente bem alimentadas, durante dez dias seguidos seja consideravelmente mais fácil.

Foi precisamente numa dessas viagens, no percurso de ida da Terceira Armada Portuguesa, que a ilha de Ascensão foi encontrada, no dia em que, em 1501, se comemorava a Ascensão de Cristo. A expedição era comandada por João da Nova, um fidalgo nascido na Galiza mas há vários anos ao serviço do Rei de Portugal, e que chegou a exercer o cargo de Alcaide de Lisboa. Esta Terceira Armada era composta por três naus e uma caravela e tinha sido enviada por D. Manuel I em reforço da armada de Pedro Álvares Cabral, que um ano antes chegara ao Brasil, na sua passagem Atlântica para a Índia. Na altura em que João da Nova partia de Lisboa, Álvares Cabral iniciara já a sua penosa viagem de regresso, em que perderia várias embarcações ao largo do Cabo da Boa Esperança.

Ascensão é uma ilha particularmente árida e foi considerada de pouca utilidade pela Coroa Portuguesa, que nunca a reclamou. Passou a ser apenas um ponto de paragem esporádico onde os marinheiros se reabasteciam de carne fresca, caçando aves marinhas e tartarugas gigantes que vinham (e ainda vêm) desovar nas praias de areia fina da ilha.

Tristão da Cunha – que os ingleses designaram oficialmente como Tristan da Cunha e pronunciam, de forma algo ofensiva para ouvidos nacionais, por “Tristan da Cuna – foi a última a ver a sua existência registada, em 1506. O Almirante D. Tristão da Cunha, na sua travessia do Atlântico Sul rumo à Índia, avistou a ilha principal deste pequeno arquipélago, já a meio caminho da Antárctida, e não viu razões para lhe dar outro nome. No entanto, os ventos e ondulação muito fortes daquelas latitudes, designadas posteriormente por roaring fourties, impediram o desembarque, algo que nos pode muito bem acontecer a nós, cinco séculos depois.

Curiosamente, a descoberta destas ilhas hoje quase ignoradas foi, à época, noticiada com algum detalhe pelo cronista Gaspar Correia: “Hum dia, em amanhecendo, o Capitão Mor, que hia diante, ouve vista das Ilhas a que logo pôs o seu nome como se chamão oje em dia Ilhas de Tristão da Cunha. As Ilhas erão de pedra viva, talhadas a pique, todas lauradas do mar, que parece que com as tormentas as cobria (…) e nom acharão nenhum sobidouro per que fossem acyma. Os pilotos as apontarão em suas cartas de marear, polo que d'então forão muy sabidas. E, de facto, Tristão passou a figurar nas cartas náuticas a partir de 1509 e surge no Mapa Mundo Mercator em 1541. O primeiro desembarque terá sido feito a partir de uma nau portuguesa, em 1520, mas a primeira expedição em relação à qual existem registos históricos foi feita por um navio da Companhia das Índias Holandesas, em 1643. No entanto, a ilha, com os seus declives rochosos, escassez de terrenos agrícolas, ausência de porto natural e clima agreste foi descartada como potencial local de instalação e deixada aos pinguins, aos albatrozes e ao vento. E assim Tristão, como Ascensão, muitos quilómetros a norte, permaneceu desabitada até que Santa Helena recebeu o seu mais famoso e involuntário habitante, Napoleão Bonaparte, em 1815.

Santa Helena foi, das três ilhas, a que teve maior importância na história marítima portuguesa. Foi descoberta em 1502, na viagem de regresso da armada de João da Nova e era, como as restantes, desabitada. Mas a sua localização, a meio caminho entre Cabo Verde e o Cabo da Boa Esperança, o clima temperado e a abundância de vegetação e água doce tornaram-na num ponto estratégico de reabastecimento das naus da Carreira da Índia. Os marinheiros trouxeram para a ilha cabras e porcos e plantaram vegetais, ervas aromáticas e árvores de fruto, sobretudo citrinos, para combater o escorbuto. Construíram também uma capela de madeira, provavelmente no local onde hoje se encontra a catedral de Jamestown, e algumas pequenas casas. Durante mais de 80 anos, Portugal manteve secreta a existência de Santa Helena, a que os navios aportavam sobretudo no regresso de Goa, reabastecendo de alimentos e água fresca e desembarcando marinheiros doentes que, caso sobrevivessem, eram recolhidos muitos meses mais tarde, quando os navios regressavam à ilha. Mas o segredo não podia durar para sempre, e quando ingleses e holandeses o conheceram, passaram a fazer emboscadas aos navios portugueses que voltavam da Índia com a sua preciosa carga de especiarias. E Portugal abandonou Santa Helena, que acabaria por se tornar, em 1659, a segunda colónia ultramarina do Império Britânico.

Cinco séculos depois, neste barco inglês tecnologicamente avançado mas com algo de intrinsecamente anacrónico, olhando o mesmo mar que acompanhou os passageiros das naus quinhentistas, não deixa de nos surpreender que algo nos ligue, ainda que de forma ténue, a estes lugares tão distantes no mapa e na História. Uma História que poderia ter sido diferente, tivesse o primeiro habitante de Santa Helena, o ermita Fernão Lopes, influenciado mais do que um clássico da literatura mundial. Mas, essa, é uma outra história.