Luciano Floridi: “Eu não acredito em deus. Espero é que ele exista”

Um filósofo não crente que se dedica a discutir a possibilidade da existência de deus e a ideia de esperança, tendo como pano de fundo as revoluções tecnológicas que a humanidade enfrenta e as suas implicações

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Rui Gaudencio

Juntar filosofia, fé, tecnologia e racionalidade na mesma conversa não é óbvio. Mas é o caminho que está a ser tentado por Luciano Floridi, um pensador italiano que trabalha no campo da ética da informação e que explora as mudanças que a tecnologia tem imposto na sociedade. É professor de Filosofia e director do Laboratório de Ética Digital na Universidade de Oxford, em Inglaterra. O seu trabalho mais recente tem-se dedicado às consequências sociopolíticas das mudanças tecnológicas. O seu último livro, intitulado The Fourth Revolution – How the Infosphere Is Reshaping Human Reality (“A Quarta Revolução - Como a Infoesfera está a reformatar a realidade humana”, ainda não editado em Portugal), trata do impacto das tecnologias da comunicação e informação na forma como olhamos para nós mesmos enquanto espécie e enquanto indivíduos.

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Juntar filosofia, fé, tecnologia e racionalidade na mesma conversa não é óbvio. Mas é o caminho que está a ser tentado por Luciano Floridi, um pensador italiano que trabalha no campo da ética da informação e que explora as mudanças que a tecnologia tem imposto na sociedade. É professor de Filosofia e director do Laboratório de Ética Digital na Universidade de Oxford, em Inglaterra. O seu trabalho mais recente tem-se dedicado às consequências sociopolíticas das mudanças tecnológicas. O seu último livro, intitulado The Fourth Revolution – How the Infosphere Is Reshaping Human Reality (“A Quarta Revolução - Como a Infoesfera está a reformatar a realidade humana”, ainda não editado em Portugal), trata do impacto das tecnologias da comunicação e informação na forma como olhamos para nós mesmos enquanto espécie e enquanto indivíduos.

O autor veio a uma conferência sobre inteligência artificial, na Universidade do Porto, abordar algo que normalmente está longe das conversas sobre tecnologia: o divino. A sua ideia é que devemos valorizar a esperança na possibilidade da existência de deus e que isso é compatível com a racionalidade. Pelo meio critica a forma como a tecnologia se quer tornar omnipotente e dominante, incluindo no controlo da ideia e do ideal da esperança. O modo como Floridi cruza a expectativa do divino com a crítica à fé desmesurada na tecnologia como resolução para todos os problemas da humanidade foi o mote para esta conversa.

Na sua apresentação mencionou que o valor mais alto da esperança deve ser a existência do divino, que isso deve ser algo a que o ser humano deve aspirar. Em contraponto, a utopia tecnológica quer propagar um valor ainda mais elevado do que esse, porque afirma que no futuro a evolução do ser humano vai fazer com que sejamos nós mesmos o divino. Deixamos de precisar de deus, porque nos tornamos deus.
Sim, é exactamente isso que nos vendem, que nos tornaremos melhores e mais poderosos. Num certo sentido é como na publicidade, que me quer vender aquele carro e me diz que se eu o comprar fico mais interessante e mais atraente. Mas é um disparate, eu ainda sou eu e serei com ou sem carro. É um truque. Faz parecer que sim, que podemos ser deus e o valor mais alto que existe no Universo.

Mas depois temos de olhar para a História: já tanta vez nos pusemos no centro do Universo e fomos sempre arredados desse papel. Copérnico, Darwin, Freud, Turing, todos eles foram pensadores que nos fizeram o favor de se afastar do centro do Universo. Nós não somos o valor supremo do Universo, há sempre pensadores que são suficientemente inteligentes para perceber isso. Ou há algo mais – e eu não estou a dizer que há, atenção –, ou então o cenário fica incompleto. E essa é a deriva histórica que se verifica sempre que o homem se coloca no centro do Universo.

Estamos num processo em que a religião das novas gerações poderá ser a tecnologia. Yuval Noah Harari defende, no Homo Deus, que pode ocorrer um movimento religioso face à tecnologia, tornando como inevitável uma fé dominante nela... Isso não o preocupa?
Não há propriamente um problema quanto a uma tecno-igreja. Mas seria uma oportunidade perdida, creio. Se não percebermos quão extraordinários e simultaneamente limitados nós somos, estamos a desperdiçar o nosso capital de análise. Noutro contexto, gosto de me referir à humanidade como um erro lindo: e podemos olhar para a beleza do erro ou para a dimensão errada da beleza. Somos ao mesmo tempo capazes das coisas mais horríveis e das mais belas, o Holocausto e a mão de David na Capela Sistina foram feitos pela mesma espécie... Parece-me, nesse sentido, que é altamente limitador resignarmo-nos a almejar aquilo que somos e que temos, mas gosto de acreditar que o Universo contém mais do que isso.

O maior problema dessa tecno-fé ou tecno-religião é que coloca um limite na esperança. Vê o indivíduo como o fim de tudo e limita o alcance da esperança, que é uma forma de a matar. Tem tudo que ver com a perspectiva: se eu for um pequeno pássaro numa jaula enorme, eu posso não perceber que a jaula está lá – mas não é por eu não ter a percepção da jaula que ela deixa de existir. Acredito que essa limitação da esperança é um empobrecimento da humanidade. E há outro problema: essa forma de pensar é também frustrante em termos de ambições. Algumas das maiores realizações da humanidade ocorreram porque sempre tivemos esperança em algo mais e melhor e nunca nos contentamos com o que há.

O consumismo trata sempre de reduzir o espectro da esperança ao objecto ou produto que está em frente aos nossos olhos. Se é comprável, então está no limite da esperança – se não é comprável, então não tem valor. Assim, o que é economicamente adquirível é o que deve estar dentro do meu limite de esperança e nada mais – acho que é uma tristeza pensar assim. Outra expressão desse pensamento é a afirmação de que toda a política é económica. Não é! Há tantas coisas mais: as finanças de um país são um meio para um fim, não são um objectivo em si mesmas. Mas o horizonte de quem pensa assim é reduzido.

A sua conclusão sugere que a humanidade deve caminhar para uma teologia da esperança, certo?
Ter esperança implica acreditar em algo que não podemos provar nem testar. Implica um salto de fé, implica simplesmente acreditar sem ter demonstrações que ajudem nessa crença. Seria bom poder injectar alguma dose de racionalismo nessa interacção que fazemos com a ideia de algo transcendente. Nesse sentido a minha proposta é a de que não se abdique da racionalidade, antes pelo contrário, que use mais racionalidade e se faça mais reflexão. Em primeiro lugar, ter esperança que deus exista é muito diferente de acreditar que ele existe. Aliás, se eu acreditar, quero ter a certeza daquilo em que estou a acreditar. Mas não preciso de chegar aí; preciso só de aceitar a hipótese de que existe um valor transcendente no Universo – algo mais do que aquilo que é fisicamente palpável.

Isto tem muito mais que ver com esperança do que com crença. E é aqui que a esperança se torna uma suspensão da crença. Eu não posso acreditar e decidir sim ou não pela existência do divino, porque não tenho provas para o fazer. O que eu posso é desejar que sim, que exista, até porque o mundo faria muito mais sentido. E seria muito bom para a sociedade, porque nos permitiria ser ainda mais ambiciosos nos nossos objectivos – indo muito para além da sociedade consumista em que estamos.

E é por isso, por essa superação do ser humano, que um homem que não acredita em deus se preocupa com a existência desse mesmo deus?
Sim. Mas note, não é uma preocupação. Eu não acredito em deus – eu espero é que ele exista.

 

Nota: A International Conference on Artificial Intelligence and Information foi organizada pela Associação Episteme & Logos com o apoio do Mind, Language and Action Group, do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto