Há fogo, e apelos à solidariedade, no conto de natal de Lavradas

Comunidade de Ponte da Barca perdeu a igreja do século XVIII num incêndio, esta semana, e procura formas de a reerguer. A solidariedade movimentou a população, tocando até gente que nem frequentava o templo, diz o pároco.

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Solidariedade não está na lista de palavras do ano em Portugal que uma conhecida editora costuma organizar. Os incêndios que puxaram por ela, levando milhares de portugueses a mobilizarem-se pelas populações afectadas, ficam na memória de todos, e por estes dias há uma aldeia do Alto Minho que viveu de perto o poder destrutivo das chamas. Lavradas viu o fogo consumir a velha igreja paroquial, e este Natal, a missa que assinala o nascimento de Cristo vai ter de ser celebrada na Junta de Freguesia.  

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Solidariedade não está na lista de palavras do ano em Portugal que uma conhecida editora costuma organizar. Os incêndios que puxaram por ela, levando milhares de portugueses a mobilizarem-se pelas populações afectadas, ficam na memória de todos, e por estes dias há uma aldeia do Alto Minho que viveu de perto o poder destrutivo das chamas. Lavradas viu o fogo consumir a velha igreja paroquial, e este Natal, a missa que assinala o nascimento de Cristo vai ter de ser celebrada na Junta de Freguesia.  

Este é o conto de Natal que ninguém em Lavradas queria guardar para as gerações futuras. Referência maior na vida daquela paróquia desde o final do século XVII, a igreja foi destruída num incêndio que deflagrou na madrugada de segunda-feira. No interior do templo, restam apenas as paredes, nuas, a sacristia e os escombros enegrecidos de madeira, de telha e de talha dourada sobre um chão a céu aberto. Esta segunda-feira, às 11h30, o bispo de Viana do Castelo, Anacleto Oliveira, preside à Missa de Natal, num sinal improvisado de apoio institucional a uma comunidade em sofrimento.

O evento abalou a população. “É como se tivéssemos perdido algo nosso, algo que vive dentro das nossas paredes”, confessava o presidente da Junta de Lavradas, André Fernandes, enquanto acompanhava, na terça-feira, as acções de limpeza protagonizadas pela equipa de Protecção Civil da Câmara de Ponte da Barca. O autarca reconhece que a situação tem contornos ainda mais “frágeis” por ocorrer perto do Natal, convicção partilhada por Rosa Alves, catequista há mais de 30 anos na paróquia.

“Não sei como a comunidade vai reagir. Vai ser um Natal triste”, disse, recordando detalhes do templo, antes das chamas: o altar-mor dourado, o altar de Nossa Senhora de Fátima à esquerda da entrada principal, com a Sagrada Família “muito antiga”, em baixo, e, sobretudo, a escultura de Jesus Cristo. “Não se via Cristo em igreja nenhuma como o nosso. Parecia mesmo perfeito, parecia mesmo natural”, evocou.

Lavradas, situada numa freguesia com 875 habitantes, segundo o Censos de 2011, apela ao sentido de parilha da época, e as primeiras respostas não tardaram a surgir. Pároco naquela comunidade há cerca de um ano, Filipe Sá realça o esforço da comunidade, inclusive de “gente que não participava na igreja”, mas também o apoio já manifestado pela Câmara Municipal, por entidades dispostas a “apresentar espectáculos para angariação de fundos” e por paróquias do mesmo arciprestado (Ponte da Barca), mas também de Caminha, de Melgaço, dos Arcos de Valdevez e até de Barcelos.

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Filipe Sá é pároco de Lavradas há um ano. Agora tem uma igreja para reconstruir Adriano Miranda

Esta disponibilidade vai ao encontro do pedido do bispo de Viana, divulgado pela Agência Lusa, a meio da semana, para as restantes paróquias da diocese contribuírem para a reconstrução da igreja com os donativos recolhidos nas missas de Natal. Outras iniciativas solidárias estão a ser divulgadas através das redes sociais. O Clube da Juventude Barquense, uma organização juvenil católica, anunciou na sua página de Facebook que reuniu voluntários para a recolha de donativos em 12 das 25 paróquias de Ponte da Barca, nas missas de 23 a 25 de Dezembro.

A página “Os Amigos de Lavradas” divulgou, na mesma rede social, o número da conta solidária para quem quiser doar uma quantia à paróquia. Embora sem garantias até agora, o presidente da Junta de Freguesia espera ainda contar com a ajuda dos empresários da freguesia e também dos emigrantes, que residem, sobretudo, em França e em Andorra, mas também no Canadá e nos Estados Unidos da América.

Reconstrução ainda por definir

O investimento necessário para reerguer a igreja é, para já, desconhecido. Com o prejuízo ainda por avaliar, André Fernandes realçou que a Junta de Lavradas não tem ainda noção dos gastos, mas diz que já se encontra a pesquisar se a obra é enquadrável nalgum mecanismo de financiamento. Também o presidente da Câmara, Augusto Marinho diz que vai tentar “todas as vias” para financiar a recuperação do templo, embora, até agora, a autarquia tenha estado concentrada em “limpar e estabilizar o edifício”, disse.

A reacção à perda começou logo na segunda-feira, com uma equipa da protecção civil da Câmara Municipal de Ponte da Barca a deslocar-se ao local para arrumar os destroços que se espalhavam pela superfície da igreja e remover as vigas que suportavam o tecto, inseguras, antes de começar a limpar a igreja, explicou o supervisor da equipa, Carlos Dantas. A limpeza, estimava o responsável, deveria estar concluída até ao Natal, antes de a madeira ser substituída por saibro, para evitar uma possível inundação daquele espaço, com as chuvas.

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Adriano Miranda

Na terça-feira, alguma ordem já tinha sido reposta: o chão de madeira, apodrecida e negra, estava visível, com algumas tábuas instáveis e outras, já removidas, amontoadas num dos lados. Sob o azul do céu matinal, os trabalhadores repartiam-se nas tarefas: alguns, de pá, removiam destroços na zona onde Filipe Sá, antes, presidia às eucaristias; outros, de carrinho de mão, retiravam-nos da igreja. No exterior, o edifício aparentava ser o mesmo de outrora, mas a mancha negra junto à borda do relógio - só restaram os ponteiros - revelava o que sucedeu no interior.

Foi precisamente o mecanismo que ligava o relógio aos sinos que denunciou as chamas à vizinhança que dormia. “Dei por conta do fogo, porque o sino tocou a defunto . Mas abri a janela e vi que ainda era de noite”, conta Manuel Cerqueira, de 69 anos, residente na zona da igreja há mais de 40. Só quando abriu a porta de casa é que se apercebeu do incêndio. 

As chamas, recorda, projectavam-se para fora da igreja junto à cruz que, no telhado, encimava a divisória entre a nave e o coro onde estava o altar-mor. As telhas estalavam. Depois de ter ligado aos bombeiros, ainda se dirigiu com uma mangueira para a igreja, mas, incapaz de arrombar a porta, limitou-se a ver o fogo queimar o resto do edifício, antes da chegada dos 30 elementos das corporações de Ponte da Barca, de Ponte de Lima e dos Arcos de Valdevez, que, entretanto, extinguiram as chamas.

A ocorrência está sob investigação da Polícia Judiciária. Entre a comunidade, porém, impera a teoria de que um curto-circuito na instalação eléctrica, antiga, terá sigo a fonte de ignição para o incêndio. “Os fios estavam encostados à madeira. Quando entrei para mordomo há 25 anos, com o padre José Carneiro, já aquilo estava assim. Tinha de dar problemas”, explica Armando Gomes, notando que todos os dias apagava as velas. 

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A catequista Rosa Alves lembrou que a paróquia comprou, há 12 anos, um aspirador, mas a instalação não aguentava a energia da máquina. O padre Filipe Sá disse até que a paróquia já estava a “angariar fundos para colmatar o problema”, mas já não foi a tempo.

Órfãos do principal espaço para o culto, os paroquianos querem, pelo menos, aguentar as rotinas até hoje alimentadas, semana após semana. Com 80 anos, Armando Gomes preparava os paramentos para o pároco, tocava o sino e “deixava tudo organizado”. Mesmo com as missas transferidas para a sede da Junta de Freguesia, o mordomo quer prosseguir o trabalho.

“Tenho de o fazer enquanto estou vivo. Vou continuar com a mesma rotina lá, enquanto o padre me quiser”, assegurou. As actividades da catequese e dos grupos corais juvenis, promete Rosa Alves, também vão prosseguir como eram, ainda que num cenário “muito diferente”. “Não podemos falecer”, declara.

A igreja não estará de pé a tempo da Páscoa, a maior festa litúrgica dos católicos, garantiu o pároco. Com o projecto de reabilitação ainda por concretizar, Filipe Sá adiantou que a reconstrução vai decorrer “conforme as possibilidades que vão surgindo”, e que “fazer bem feito” aquilo que se tem de fazer é a prioridade para, um dia, entregar de novo aquele espaço à comunidade. Para já, Lavradas espera que o seu (triste) conto de Natal mobilize os corações nas paróquias vizinhas, de modo a conseguir, rapidamente, reescrever o final desta história.