O sal faz-se no feminino (e em família)

No salgado da Figueira da Foz, as mulheres eram imprescindíveis no transporte das salinas para os armazéns. Hoje, mantêm-se quase 20 mulheres pelas salinas figueirenses, mas já fazem tudo, desde rer a moirar.

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Agora, não é tempo de ver o sal espalhado em pequenos montes pelas 45 salinas que ainda subsistem no salgado da Figueira da Foz — isso ficou lá atrás, no Verão. Hoje, o sal amontoa-se nos armazéns (ou “casas”, como lhes chamam) à espera de ser ensacado e vendido. As diferenças encontram-se entre estações do ano, mas também entre épocas. Há 30 ou 40 anos, ninguém esperava ver 16 mulheres retratadas numa exposição que quer mostrar que o trabalho nas salinas tem muito de feminino.

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Agora, não é tempo de ver o sal espalhado em pequenos montes pelas 45 salinas que ainda subsistem no salgado da Figueira da Foz — isso ficou lá atrás, no Verão. Hoje, o sal amontoa-se nos armazéns (ou “casas”, como lhes chamam) à espera de ser ensacado e vendido. As diferenças encontram-se entre estações do ano, mas também entre épocas. Há 30 ou 40 anos, ninguém esperava ver 16 mulheres retratadas numa exposição que quer mostrar que o trabalho nas salinas tem muito de feminino.

Os relatos de As Mulheres no Salgado da Figueira da Foz, expostos no Núcleo Museológico do Sal, mostram que sempre teve. As salinas, mais de duas centenas, se recuarmos quatro décadas, recrutavam as mulheres para tirar as lamas, se estivéssemos na Primavera, ou para transportar o sal em cestas, à cabeça, suportadas pela rodilha que ainda hoje é marca nos trajes folclóricos que representam estas mulheres que andavam para trás e para a frente entre os talhões — as salineiras.

Rosa Santos ainda tem memórias claras de acordar com a madrugada alta para ir com a mãe “tirar o torrão”, uma expressão mais tradicional para a fase de retirar as lamas das salinas. À época, a menina de sete ou oito anos não ajudava — o trabalho era duro —, mas o interesse ficou.

Ao lado, a sobrinha — que já tinha avisado que as duas são “unha e carne” — revê-se nestas memórias: afinal foi ela que trouxe a tia para a Salina do Negrão, nos Armazéns de Lavos.

Tânia Cardoso convidou Rosa para a ajudar na salina há cerca de sete anos e tornou aquela praia (outro dos nomes que dão ao seu terreno) umAgora, não é tempo de ver o sal espalhado em pequenos montes pelas 45 salinas que ainda subsistem no salgado da Figueira da Foz — isso ficou lá atrás, no Verão. Hoje, o sal amontoa-se nos armazéns (ou “casas”, como lhes chamam) à espera de ser ensacado e vendido. As diferenças encontram-se entre estações do ano, mas também entre épocas. Há 30 ou 40 anos, ninguém esperava ver 16 mulheres retratadas numa exposição que quer mostrar que o trabalho nas salinas tem muito de feminino.

Os relatos de As Mulheres no Salgado da Figueira da Foz, expostos no Núcleo Museológico do Sal, mostram que sempre teve. As salinas, mais de duas centenas, se recuarmos quatro décadas, recrutavam as mulheres para tirar as lamas, se estivéssemos na Primavera, ou para transportar o sal em cestas, à cabeça, suportadas pela rodilha que ainda hoje é marca nos trajes folclóricos que representam estas mulheres que andavam para trás e para a frente entre os talhões — as salineiras.

Rosa Santos ainda tem memórias claras de acordar com a madrugada alta para ir com a mãe “tirar o torrão”, uma expressão mais tradicional para a fase de retirar as lamas das salinas. À época, a menina de sete ou oito anos não ajudava — o trabalho era duro —, mas o interesse ficou.

Ao lado, a sobrinha — que já tinha avisado que as duas são “unha e carne” — revê-se nestas memórias: afinal foi ela que trouxe a tia para a Salina do Negrão, nos Armazéns de Lavos.

Tânia Cardoso convidou Rosa para a ajudar na salina há cerca de sete anos e tornou aquela praia (outro dos nomes que dão ao seu terreno) um assunto de família. “Já cá estava o bichinho e a minha sobrinha passou-nos esta coisa boa e maravilhosa”, confessa a tia. Estava desempregada na altura, mas aceitou ir matar o tal do “bichinho”, tendo levado consigo o seu marido.

Quando Tânia, juntamente com o marido, começaram nesta salina, já a mulher de 39 anos contava com cerca de cinco anos como professora do ensino primário. Turistas, amigos, todos lhe fazem a mesma pergunta: “O que é que faz uma professora no meio do salgado?” Como é que alguém passa as férias às voltas com o sal? “Sou professora na escola primária há 16 anos, e vim parar às salinas à custa do meu marido. Ele adquiriu esta salina há cerca de 12 anos. Somos casados e onde está um está outro”, explica Tânia.

Apesar de andarem juntos pela Salina do Negrão — agora com a companhia dos tios de Tânia —, o trabalho vai-se diversificando. Ora rê (rapar a salina, para tirar o sal), ora moira (tratar das águas que chegam aos talhões), ora achega (juntar o sal), ora carrega, que é como quem diz que aqui todos fazem de tudo um pouco, seja homem ou mulher. “Aqui trabalhamos assim, fazemos tudo, revezamo-nos”, define a professora.

Apesar de o trabalho ser intenso e desgastante — no Verão, chegam a aproveitar todas as horas de sol —, a professora aproveita os meses da colheita do sal e da flor do sal para ganhar novo ânimo. “Ao contrário do que se pensa, é muito bom vir para aqui. Recarrego baterias. A paz e a tranquilidade de tudo isto dá para descansar um bocadinho do ano lectivo e recarregar para o próximo”, diz, enquanto olha para as salinas que preenchem toda a paisagem desta zona da Figueira da Foz. Aqui o sal continua a ter uma palavra a dizer, como tinha há anos. São “umas férias diferentes”, acrescenta.

Além da paixão — essencial para a actividade, como ambas concordam —, Tânia Cardoso acrescenta que isto não é apenas um rendimento extra. Há outra parte em jogo, a de “manter vivas as tradições”, algo que valoriza e que explica vivamente: “O salgado da Figueira da Foz, em tempos, foi muito importante, na altura dos bacalhoeiros, quando era o sal que conservava a comida. E é uma pena, hoje em dia, perdermos profissões como esta.”

Para elas, os antigos estereótipos pouco as afectam. Sabem como era, pelo menos das imagens e das histórias, mas na Salina do Negrão e nas outras por onde se espalham quase 20 mulheres o trabalho é igual para todos e o trabalho de transporte das salineiras já é mais dos homens que destas mulheres, que quase se podem denominar “marnotas”.

A Rosa Maria do Morro

Rosa Maria começou aos 15 anos a transportar o antigo ouro branco da salina para o armazém. Aos 71 anos, continua a ir ao sal e a ter saudades de quando os “montinhos” preenchiam a paisagem

À beira do rio, de um lado o porto da Figueira da Foz, do outro os armazéns que guardam o produto das salinas que povoam esta margem. Há o Corredor do Sol ou a Tapada do Sul, mas a paragem é na Salina do Morro, onde a “casa” guarda, além do sal, Rosa e Manuel Moreira. Nunca viram outro trabalho, nem nunca procuraram. Conhecem a sua salina, que agora passaram ao filho, como a palma da mão, afinal são quase 50 anos no mesmo local.

Rosa Maria, como diz que todos a chamam, atravessou décadas de trabalho nas salinas, mas nunca se meteu nas ditas actividades que estavam associadas ao homem. Já não carrega as cestas, nem limpa o torrão como fazia quando era mais jovem. Os 71 anos não a deixam ajudar tanto quanto mostra querer e este Verão não conseguiu mesmo ir para a salina com o marido e o filho. Uma operação à coluna impediu-a de passar os meses quentes rodeada de tudo o que é “bonito”, como repete ao longo da conversa.

“Calhou”, como diz, a casar-se com um homem que já andava nas salinas e ela, também nestas lides, juntou-se a ele. Casaram-se aos 26 anos e Rosa mudou-se para a Salina do Morro (que tinha outros donos), onde o marido já trabalhava. Aquela praia de antigo ouro branco passa para as mãos do casal por insistência do dono que, conta Rosa, não queria que a salina fosse vendida a alguém sem ser o “Manelzinho”, que sempre trabalhou no Morro. Nunca mais saíram.

Mesmo sem moirar, nem achegar, Rosa Maria sabe todos os processos e todos os nomes que cada zona da salina tem, desde as cabeceiras aos talhões ou à vaza: “Cada um tem o seu nome, umas palavrinhas que não têm grande jeito.”

Desde os 15 anos que começou como salineira, a carregar o sal de um lado para o outro. “Já andava lá uma colega minha e depois o senhor que andava nas salinas era meu vizinho e dizia assim: ‘Ó Rosa Maria, tens de ir também tirar sal para mim.’ Tinha eu 15 anos”, conta. A mulher, então menina, lá foi carregar o sal e tirar as lamas para os marnotos, que depois lhe pagavam o dia.

Recorda as mulheres com as gamelas e os alguidares à cabeça a tirar o torrão das salinas, indica o percurso no transporte do sal e ainda fala das salinas de terra, que eram um perigo e não deixavam o sal tão limpo. Mas a principal diferença está à distância de um olhar à nossa volta. “Então não está a ver tudo em pousio? Antigamente era tudo cheio de salinas. O salgado era todo bonito. Agora estão aquelas além em pousio, estas ao lado de nós também”, diz com alguma tristeza. “Era o melhor que se tinha.”

A dureza do trabalho e os congeladores e frigoríficos fizeram com que a actividade fosse perdendo preponderância na região. As mulheres também deixaram de querer colocar as cestas e os alguidares em cima da rodilha que servia de apoio à cabeça e perderam-se muitos terrenos para os viveiros ou para os pousios que rodeiam as salinas ainda activas.

O trabalho, no entanto, nunca assustou Rosa Maria — “não há nada que não seja trabalhoso”, atira — e é por isso que ainda reserva o Verão para olhar para uma paisagem com “os montinhos”. A Salina do Morro está entregue ao filho — que se despediu do emprego para se dedicar ao sal —, mas Rosa vai continuar por ali e, no próximo ano, quer voltar a marcar a presença. “Sempre gostámos de andar aqui, foi sempre o nosso trabalho.”

Texto editado por Ana Fernandes