Um ovni na Bulgária que se chama comunismo

Agarrámos no livro Forget Your Past e fomos procurar as ruínas modernas do comunismo, as toneladas de betão armado, os colossais Transformers e os maravilhosos painéis de pastilha dourada. Entretanto, a Bulgária continua desesperadamente a tentar esquecer o seu passado.

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À nossa frente está um entroncamento. A seta à direita, estrada alcatroada, indica a proximidade do memorial de Shipka, homenagem aos mortos da guerra russo-turca (1877/78) com um parque de estacionamento, canteiros arranjados e turistas búlgaros que se fotografam na escadaria que dá acesso ao leão gigante de bronze empoleirado numa torre de mais de 30 metros. Não há nenhuma seta para o caminho da esquerda, um percurso sinuoso de terra batida que meia hora depois revela Buzludzha, um ovni — ou o mais parecido no mundo que já vimos com um ovni —, a casa-monumento do partido comunista búlgaro construída pelo regime no pico da montanha e que a Bulgária quer esquecer.

Após as mudanças políticas em 1989, muitos dos monumentos icónicos da era comunista foram desmantelados e a maioria dos arquivos relevantes para a sua história foram destruídos. A Bulgária, deitada no divã do terapeuta, acredita que apagando os vestígios de arquitectura brutalista apaga o passado recente. Mas, por teimosia ou por falta de leves para a sua demolição, largas dezenas de exemplares construídos entre 1945 e 1989 permanecem de pé, firmes e imponentes, estruturas de betão armado abandonadas no topo das montanhas, meio escondidas pela vegetação, usadas como refúgio por indigentes, vandalizadas, mal-amadas.

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A Fugas pegou nas imagens do livro Forget Your Past, de Nikola Mihov, fotógrafo natural de Sófia (1982) e percorreu algumas das principais cidades búlgaras para confirmar que os nada subtis pametnik (monumentos), expressão pungente do orgulho nacional (seja dos feitos do exército soviético, seja da revolta de Abril contra o império otomano), são hoje um património saqueado e negligenciado. Todos são símbolos do passado. Quase todos compartilham um destino comum: o esquecimento.

Buzludzha

Enjoy Communism”. A inscrição, fonte roubada à imperialista Coca Cola, recebe-nos às portas de Buzludzha, que é quase a parte pelo todo no roteiro da arquitectura brutalista búlgara, monumentos em número desconhecido e sem dono desde a queda do regime totalitarista. Quando aqui se chega, e depois de se tentar estacionar entre tufos de ervas daninhas e cavalos selvagens, é difícil imaginar que este monumento foi inaugurado com pompa e circunstância a 23 de Agosto de 1981, glorificando um grupo de socialistas liderados por Dimitar Blagoev que 90 anos antes se reunira no pico com um grupo de socialistas para planear o futuro do país.

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Para o “monstro” aqui assentar em 1974, o pico da montanha teve que ser nivelado com a ajuda de explosivos, tendo sido removidos 15 mil metros cúbicos de pedra. A colina perdeu nove metros para depois ganhar 70 toneladas de cimento, três toneladas de ferro e 40 toneladas de vidro. À medida que nos aproximamos do topo da colina, e depois de paragens “obrigatórias” no monumento da tocha e no lodge — uma guest house que abriu em 1936 para receber peregrinos que se deslocavam ao pico de Buzludzha para prestar homenagem ao revolucionário Hadzhi Dimitar —, vai ficando tão visível a força do betão armado como as marcas do vandalismo, o lixo e a pichagem. Quando Nikola Mihov aqui esteve, há sensivelmente cinco anos, encontrou a frase com que baptizou o seu livro, mas até esse forget your past foi esquecido e substituído por outras palavras de ordem, recados românticos e inscrições revolucionárias.

Penetrar em Buzludzha pode ser tão complicado como resolver um escape game. Não basta, para isso, pesquisar fóruns na Internet e seguir pistas deixadas como migalhas no Instagram. No espaço de dias, a única entrada assinalada no mapa dos exploradores pode já estar soldada como todas as outras portas do complexo e a entrada do buraco que conduzia a uma das entradas pode já estar soterrada. Na maior parte das vezes, quando se fecha uma porta em Buzludzha, abre-se uma janela em Buzludzha — ou, neste caso, fica ao pendurão um cabo e uma grade de ventilação, uma escada improvisada para um desnível no interior do elefante branco.

Cerca de 550 metros quadrados do interior do espaço — da nave espacial — foram forrados com 35 toneladas de pastilha de vidro de cobalto importado da Ucrânia com 42 cores. O puzzle, que conta a história do partido comunista búlgaro, foi montado por 60 artistas durante 18 meses e destruído ao longo das últimas décadas. O que resta do recheio são milhares de peças coloridas de pastilha, arrancadas das paredes, que agora revelam os esboços dos murais. Nas paredes do gigantesco anfiteatro ainda moram os retratos solenes de Engels, Marx e Lenine. Na omnipresente cúpula por onde penetram raios de sol conserva-se o símbolo da foice e do martelo e a inscrição em cirílico “Trabalhadores de todo o mundo uni-vos!”.

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Através da parte técnica, com alguma coragem e um mapa das catacumbas, é possível aceder à torre — considerado um feito de engenharia na época, com mais de 70 metros de altura e nove de largura — e às escadas que dão acesso às estrelas de vidro vermelho que flanqueiam os lados Norte e Sul da torre e que foram construídas em Kiev (pesavam 3,5 toneladas cada). Na altura eram iluminados por uma série de 32 holofotes e alimentados por um gerador que bastava para abastecer 500 casas.

Não existem planos aparentes para renovar o edifício ou a área circundante.

Shumen

“A Bulgária começa aqui”. Estamos em Shumen, mais uma vez no ponto mais alto, no monte IIchov, a 450 metros acima do nível médio do mar, num monumento cubista (desenhado pelos escultores Krum Damyanov e Ivan Slavov) que pode ser visto a 30 quilómetros de distância. Sim, na Bulgária o tamanho contava — e muito.

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Podíamos ter subido um quilómetro de escadas, mas optámos pela versão menos grandiosa, um passeio de carro pela montanha que termina num parque infantil retro de peças de ferro pintadas e formas geométricas e que nos permite rapidamente perceber que o “Monumento dos 1300 Anos da Bulgária” é um dos raros colossos búlgaros da era comunista ainda conservados pelo Estado. Com sorte, quando nos aproximamos ao ponto de nos sentirmos como formigas perante uma assembleia universal de Transformers, estará à nossa direita uma senhora enfiada num guichet tipo klek (joelho) que nos obriga a tirar o bilhete de cócoras — a legalização da propriedade privada nos anos 1990 permitiu que os búlgaros fundassem os seus próprios negócios, mas, perante o preço demasiado alto das rendas dos espaços comerciais, foram muitas as lojas que surgiram nas caves e com uma pequena janela para a calçada das ruas de Sófia.

À nossa frente está um desfiladeiro guardado pelos Fundadores do Estado Búlgaro, uma construção (começou em Agosto de 1979 e foi inaugurada em Novembro de 1981) que parece ter força suficiente para comandar a meteorologia à sua volta e no seu interior. Pode ser intimidador — como atravessar os primeiros estreitos vermelhos em Petra, na Jordânia — caminhar entre os oito blocos de betão em forma de espiral que simbolizam o desenvolvimento e prosperidade do país, desde o seu fundador, Asparuh, que no ano de 681 aqui terá espetado a sua espada e dito “Aqui será a Bulgária, debaixo deste céu e nesta terra”. Acompanham-no um cavalo, um cão e os restantes khans (governantes), Tervel, Krum e Omurtag, estrategicamente colocados no desfiladeiro, ora cinza pesado ora dourado. No coração do edifício, na altura em que nos sentimos como se estivéssemos numa epopeia tipo Conan ou O Senhor dos Anéis, estamos perante um mosaico de três painéis, o maior do seu tipo na Europa, que se encaixa numa estrutura de 2,4 toneladas de aço reforçado. Atravessada esta dimensão, um leão de granito de mil toneladas vigia toda a planície.

Por aqui, entre estas escadarias, estátuas vigilantes e puzzles de mosaico, há quem use o memorial para sessões fotográficas de casamentos e outros momentos marcantes. Nem todos os monumentos búlgaros recebem este tipo de amor e atenção — especialmente os mais “russos”.

Varna

Bendito seja o fim do roaming na União Europeia. Qualquer smartphone nos conduz facilmente desde a zona balnear da cosmopolita Varna, através do parque e até Turna Hiil, às 301 escadas do Park-Memorial, monumento dedicado à amizade búlgara-soviética, hoje em dia usada apenas pelos atletas de fim de jornada.

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Foram necessários apenas sete meses (27 mil voluntários, dez mil toneladas de cimento e mil toneladas de ferro transportado pela encosta, que recebeu 20 mil árvores) para construir este símbolo da boa vontade e amizade entre os dois povos. O “monumento russo”, 23 metros de altura, construído em homenagem ao exército soviético, cresceu numa colina onde muitos tinham lutado contra o capitalismo e o fascismo. Na inauguração, a 13 de Novembro de 1978, os holofotes iluminaram o monumento bombástico para que o mesmo pudesse ser visto do mar e nos altifalantes soou a sinfonia n.º 7 de Shostakovich.

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Os escultores de Varna, Alyosha Kafedzhiiski e Eugene Barumov, pensaram em dois blocos dinâmicos (ao Norte quatro soldados, olhar vazio, ao Sul três mulheres com oferendas), isto para além das chamadas “escadas da vitória”, onde se esconde um gigantesco bunker nuclear. Como muitas destas estruturas, o monumento da amizade é glorioso e aterrorizante ao mesmo tempo. Este foi funcional e cuidado até 1989, ano em que foi despojada do bronze — e da música.

Plovdiv

Plovdiv é a cidade das sete colinas — e será em 2018 Capital Europeia da Cultura. Numa delas, Bunarzhik, aquela que os búlgaros escolhem para estender os piqueniques, mora a estátua de um soldado soviético (Alyosha Skurlatov, modelo do monumento, era um soldado ucraniano e morreu em 2013 com 91 anos) com 11 metros de altura e que homenageia as baixas soviéticas durante a ocupação da Bulgária. Só aqui permanece porque as autoridades de Plovdiv impediram que fosse removida em duas ocasiões (em 1989 e 1996). Apesar de lhe ter sido atribuído um guarda, dia e noite, Alyosha, controverso, chegou a estar vestido de Super-Homem, capa vermelha ao vento, durante um logo período.

A meia hora a pé, vale a pena espreitar o complexo memorial Hillock of Fraternity, uma espécie de jogo de lajes de betão armado construído em 1974 e que simboliza uma colina da região da Trácia, origem dos muitos povos que habitaram a milenar cidade de Plovdiv, ainda hoje a descobrir tesouros nas ruas e avenidas do seu centro histórico.

Perushtitsa

A cerca de 25 quilómetros de distância de Plovdiv, muitos Trabants depois, fica a pequena e tranquila Perushtitsa, cidade onde parece não ter chegado Good bye, Lenine!, filme de Wolfgang Becker que se inspira na queda do Muro de Berlim e na tentativa de um jovem esconder a verdade da mãe, tentando protegê-la. Perushtitsa — um, dois, três, diga lá outra vez — tem um lugar especial na história búlgara por se ter insurgido contra o império otomano, em 1876, resultando indirectamente na libertação do país um par de anos depois. Em 1976, na colina mais alta — onde mais? — foi inaugurado o Monumento das Três Gerações para celebrar os 100 anos desse momento de coragem.

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Sófia

Encontrar vestígios do período comunista na arquitectura de Sófia é tão fácil como encontrar palha num palheiro. Uma opção será começar pelo Largo, espaço central da capital onde se exibem três incríveis exemplares de classicismo soviético, estilo arquitectónico também apelidado de classicismo monumental. Não há como falhar — estão ali, mesmo ao lado da Catedral Aleksander Nevsky, em plena zona de paralelo-amarelo-para-turista-ver. Ao centro, a apontar para uma grelha de vidro no chão da avenida onde se escondiam vestígios da antiga cidade de Serdica, fica o mais imponente do trio, o edifício usado como sede do Partido Comunista Búlgaro que noutros tempos exibiu no seu pico mais alto uma estrela vermelha, retirada — assim como vários símbolos do comunismo que decoravam este largo — com a ajuda de um helicóptero e substituída por uma bandeira da Bulgária.

Seguir o rasto da estrela de cinco pontas leva-nos aos subúrbios de Sófia — a zona é conhecida por “Red Star” —, à rua Lachezar Stanchev, entalada entre prédios sem história onde aterrou não só este símbolo (está logo à entrada do terreno à céu aberto, à direita), mas dezenas e dezenas de estátuas, bustos e pinturas do período compreendido entre 1944 e 1989, de Todor Zhivkov a Vladimir Lenin, de Joseph Stalin a Georgi Dimitrov, passando por diferentes cenas do dia a dia do proletariado. Recordações (t-shirts e canecas) com a cara de líderes socialistas são vendidas no pequeno museu, onde se pode assistir a um filme documental das vésperas do 10 de Novembro de 1989.

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Como no Memento Park, nos arredores de Budapeste, também este Museu de Arte Socialista, fundado em 2011 pelo Ministério da Cultura, foi criado para proteger algum do património que estava a saque pelo país. Um dos momentos de vandalismo mais viral aconteceu precisamente em Sófia, no Monumento ao Exército Soviético, ao fundo da avenida Tsar Osvoboditel. Transformado numa espécie de skate park, com rampas, halfpipe e tudo (“skate or die”), este pátio é também um atelier para vândalos com referências na pop-art. Os soldados que investem sobre o inimigo foram pintados e transformados em super-heróis e super-vilões dos livros os quadradinhos, já usaram balaclavas como os elementos do grupo Pussy Riot, já foram totalmente pintados de cor-de-rosa...

Pior sorte teve o monumento numa das pontas do parque NDK (abreviatura emprestada ao Palácio Nacional da Cultura, que habita o mesmo parque, onde está um pedaço do Muro de Berlim) erigido para celebrar os 1300 anos da fundação da Bulgária e demolido há algumas semanas. Vários apelos e boicotes depois, a obra da responsabilidade do arquitecto Georgi Stoilov e dos escultores Boris Gondov, Todor Vardzhiev e Emil Mirchev não resistiu à transição.

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