Ratko Mladic: há punição suficiente para o mal absoluto?

O comandante sérvio bósnio foi condenado pelo TPI a prisão perpétua por genocídio e crimes de guerra nos Balcãs. Foi a última derrota de uma vida de violência.

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DADO RUVIC/REUTERS

Há punição suficiente para o mal absoluto? A pergunta pairou durante o longo julgamento do comandante sérvio bósnio Ratko Mladic, condenado esta quarta-feira a prisão perpétua por genocídio dos bósnios muçulmanos e vários crimes contra a humanidade pelo tribunal de Haia encarregue de julgar os crimes de guerra cometidos durante a guerra na antiga Jugoslávia.

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Há punição suficiente para o mal absoluto? A pergunta pairou durante o longo julgamento do comandante sérvio bósnio Ratko Mladic, condenado esta quarta-feira a prisão perpétua por genocídio dos bósnios muçulmanos e vários crimes contra a humanidade pelo tribunal de Haia encarregue de julgar os crimes de guerra cometidos durante a guerra na antiga Jugoslávia.

O último grande julgamento do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPI-J), fundado pelas Nações Unidas em 1993, condenou o homem que talvez tenha personificado melhor o espírito desse conflito. Mladic, apelidado de “carniceiro de Srebrenica”, teve uma vida devotada às armas e à violência, incutia um fervor que raiava o fanatismo entre os homens que comandava. Nunca duvidou da justeza da sua luta – e isso terá sido a sua perdição.

“Os crimes cometidos estão entre os mais horrorosos que a humanidade já conheceu, e incluem genocídio e extermínio como crimes contra a humanidade”, declarou o juiz presidente Alphons Orie, durante a leitura da sentença que pôs fim a um julgamento iniciado em 2012.

“Poderá haver um castigo adequado para quem cometeu tantos crimes?”, questiona Vasva Smailovic, que, mais de 20 anos depois, ainda não sabe quantos familiares perdeu na guerra. “Estou sempre a tentar contar os meus mortos, mas conto até 50 e não consigo contar mais”, diz à Reuters.

Nos Balcãs contemporâneos, a memória da guerra é ainda um terreno muito movediço. Entre os responsáveis políticos sérvios, a prioridade é seguir em frente. “Quero pedir a todos que comecem a olhar para o futuro e que não se afoguem nas lágrimas do passado”, afirmou o Presidente, Aleksandar Vucic. “Precisamos de olhar para o futuro para que tenhamos finalmente um país estável”, disse a primeira-ministra Ana Brnabic.

Mas, no terreno, ainda há quem não consiga ter tanto pragmatismo. “O Tribunal de Haia não é um tribunal, nem a lei, nem a justiça. O general irá tornar-se uma lenda, e nós iremos continuar a viver como temos vivido”, disse a autarca sérvia da cidade de Kalinovik (na República Srpska, a entidade de maioria sérvia que compõe a Federação da Bósnia-Herzegovina), Milena Komlenovic. Entre parte da população sérvia persiste um sentimento de injustiça. Acusam a comunidade internacional de tratar o país como único culpado das atrocidades cometidas durante a guerra. Entre os 83 condenados pelo TPI-J, 60 são sérvios, segundo a Reuters.

O mal em Srebrenica

Há sempre riscos quando se traçam linhas entre o bem e o mal ao olhar a História, mas Mladic nunca teve muitas dúvidas sobre onde se posicionar. No centro da sua condenação estão os crimes cometidos contra a população bósnia muçulmana de Srebrenica, em 1995. Os acontecimentos daqueles três dias de Julho, em que oito mil crianças e homens foram executados e depois enterrados em valas comuns, passaram a constar nas definições textuais de “massacre”.

A história é por demais conhecida. Srebrenica encontrava-se abrangida num enclave protegido pela ONU no território reivindicado pelos sérvios bósnios, liderados por Radovan Karadzic e apoiados pelo regime de Slobodan Milosevic. Depois de meses de cerco, as forças comandadas por Mladic entraram na cidade, no início de Julho.

Há requintes de malvadez que tornam o inferno que desceu sobre Srebrenica ainda mais terrível. Imagens televisivas da chegada das forças de Mladic mostram o comandante a distribuir rebuçados e chocolates às crianças que tinham passado os últimos meses sem comida ou medicamentos – a ajuda humanitária estava bloqueada.

Perante o avanço das forças bósnias sérvias, milhares de bósnios muçulmanos procuraram refúgio na base da missão das Nações Unidas em Potocari, a norte de Srebrenica. Seguiram-se negociações entre Mladic e os capacetes azuis que, depois de obterem garantias de segurança em relação à população civil e a troco da libertação de alguns reféns, entregam oito mil civis que se encontravam à sua guarda.

O objectivo foi sempre apenas um: “limpar” Srebrenica e torná-la uma cidade puramente sérvia. Depois de expulsarem mais de vinte mil mulheres da cidade, os militares sérvios bósnios juntaram milhares de homens e crianças em “idade de recrutamento”, ou seja, a partir dos 12 anos. Eram levados em grupos de dez para vários locais nos arredores de Srebrenica para serem executados. Em três dias foram assassinadas oito mil pessoas, de forma metódica e sistemática, numa espécie de reedição dos horrores da II Guerra Mundial novamente em solo europeu. Durante o massacre, Mladic apareceu na televisão sérvia a apresentar Srebrenica como “uma prenda para o povo sérvio”. “Muitos destes homens e crianças foram amaldiçoados, insultados, ameaçados, forçados a cantar músicas sérvias e agredidos enquanto aguardavam a sua execução”, recordou Alphons Orie.

Uma guerra com um objectivo tão marcadamente nacionalista como a que foi travada sobre os escombros da antiga Jugoslávia não pode ser feita sem homens como Mladic, que justificava o conflito como uma derradeira ofensiva contra a presença otomana no território da “Grande Sérvia”.

O ódio em Sarajevo

A violência pairou sempre sobre a sua vida. Quando tinha dois anos, Mladic perdeu o pai, um guerrilheiro da resistência que foi assassinado, em 1945, num campo de concentração dos ustasha croatas, aliados da Alemanha nazi. Na juventude, já depois da fundação da Jugoslávia, ainda tentou aprender o ofício de latoeiro, mas rapidamente integrou a vida militar que nunca mais abandonaria.

Dedicou a sua vida a servir o Exército de Tito e viu tudo desabar no meio do caos. Em 1991, esteve à frente da 9.ª Corporação do Exército Jugoslavo que tentou combater a independência croata. No ano seguinte, Mladic passou a liderar o exército dos sérvios bósnios para tentar conter novo foco separatista.

Antes de Srebrenica houve Sarajevo, a capital da república bósnia declarada unilateralmente após o referendo de 1992. Durante 44 meses, a cidade foi cercada e bombardeada de forma impiedosa pelas forças sérvias bósnias, enquanto Mladic semeava o ódio entre os seus homens: “Bombardeiem-nos até os levarem à loucura”, dizia-lhes. Morreram mais de dez mil civis até que a intervenção da NATO, em 1995, pusesse termo a um drama que chegava diariamente às televisões de todo o mundo.

Ainda o conflito não tinha terminado e Mladic era já acusado pelo TPI-J de genocídio e outros crimes contra a humanidade. Mas até à queda de Milosevic, em 2000, o comandante viveu sob protecção do líder sérvio. Em Belgrado, Mladic frequentava restaurantes e acontecimentos sociais. “Ele estava claramente protegido e sentia-se confortável a viver na Sérvia”, disse, citado pelo Guardian, o ex-agente da CIA John Sipher, que esteve envolvido em operações de perseguição a suspeitos de crimes de guerra na região.

A queda de Milosevic obrigou Mladic a tornar-se num verdadeiro fugitivo. Viu muitos dos seus companheiros de armas serem apanhados e julgados em Haia, incluindo o líder sérvio bósnio, Karadzic, detido em 2008. O fim da linha foi decretado a 26 de Maio de 2011, quando uma unidade especial da polícia sérvia o surpreende numa modesta casa caiada de amarelo na aldeia de Lazarevo, perto da fronteira com a Roménia.

Mladic tinha então 69 anos e o braço direito parcialmente paralisado por causa de um ataque cardíaco. Mas nem por isso o seu espírito combativo havia desaparecido. “Podia ter morto dez como vocês, se eu quisesse, mas não quis. Vocês são apenas jovens a fazer o vosso trabalho”, disse aos homens que o prendiam.

Os anos de prisão, interrogatórios e julgamento deixaram Mladic com uma aparência mais frágil – tinha uma presença física intimidante – mas nunca se conformou com as acusações contra si. Dizia que nunca iria permitir ser julgado por um “tribunal estrangeiro”. Essa foi a última guerra que perdeu.