Mugabe desafia tudo e todos e fica à mercê do impeachment

Num discurso de vinte minutos, o Presidente do Zimbabwe recusou afastar-se. Está "surdo e cego", disse um veterano. Horas antes, o partido tinha votado a sua demissão.

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Reuters/PHILIMON BULAWAYO

O guião parecia estar já escrito. De manhã, o partido governamental arrumava a casa, demitindo das suas funções Robert Mugabe e expulsando os elementos que espalharam a discórdia. À noite, o Presidente anunciava o seu afastamento da chefia do Estado, abrindo caminho a uma nova era no Zimbabwe. Mas ninguém parece ter avisado o ditador nonagenário que não podia continuar a portar-se como líder do país e do partido.

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O guião parecia estar já escrito. De manhã, o partido governamental arrumava a casa, demitindo das suas funções Robert Mugabe e expulsando os elementos que espalharam a discórdia. À noite, o Presidente anunciava o seu afastamento da chefia do Estado, abrindo caminho a uma nova era no Zimbabwe. Mas ninguém parece ter avisado o ditador nonagenário que não podia continuar a portar-se como líder do país e do partido.

No discurso transmitido em directo pela televisão pública, Mugabe começou por dizer que está "consciente das preocupações" que deram origem à crise política pela qual passa a antiga colónia britânica. Sentado ao lado dos militares que o mantêm detido desde terça-feira da seman apassada, o líder zimbabweano afirmou que irá presidir ao Congresso da União Nacional Africana do Zimbabwe-Frente Nacional (ZANU-PF), marcado para Dezembro. Desta forma, recusa-se a reconhecer legitimidade à reunião do Comité Central desta manhã, em que foi aprovada a sua demissão como primeiro secretário.

"Não podemos ser guiados pelo rancor nem pela vingança", declarou Mugabe, já na fase final do seu discurso. Na sala de onde falou, ouviram-se algumas palmas, mas os militares mantiveram-se impávidos, de semblante carregado.

O partido, através da sua conta oficial no Twitter, não foi meigo na reacção. “Tudo o que o velhote precisava de ter feito era seguir o guião. Agora teremos de o afastar.” A insistência de Mugabe surpreendeu o país inteiro, que aguardava a demissão. Nas horas que antecederam o discurso, fontes próximas do processo de negociação entre o Presidente e os militares garantiam que era disso mesmo que se tratava. 

O discurso representava a derradeira janela de oportunidade concedida pelo Exército e pelo próprio partido ao homem que ajudou a fundar o ZANU para que evitasse a abertura de um processo de impeachment (destituição) pelo Parlamento. Poucos minutos depois do discurso, o líder da associação de veteranos, Chris Mutsvangwa, assegurou que os procedimentos para destituir Mugabe pela via parlamentar vão avançar e acusou o Presidente de ser “surdo e cego” face às exigências da população.

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O Parlamento, dominado pela ZANU-PF, deverá reunir já na terça-feira com a destituição de Mugabe a dominar a agenda. É necessária a uma maioria de dois terços dos deputados nas duas câmaras para que o processo seja iniciado, explicava a BBC.

O peso dos veteranos 

Desde que foi detido pelo Exército na sua mansão presidencial, conhecida como “Telhado Azul”, Mugabe viu cair, um a um, os pilares que sustentaram o seu poder durante as últimas décadas. Os militares apresentaram-se unidos e não deram margem à polícia – que sempre foi uma espécie de “braço armado” do Presidente – para ensaiar qualquer resposta.

A influente associação que congrega os veteranos da “guerra da libertação” pediu quase de imediato a saída de Mugabe, também ele um veterano do conflito contra a minoria branca que governava a Rodésia. Na verdade, a acção contra o Presidente teve como objectivo precisamente de defender o legado dos veteranos e assegurar que é a facção dos ex-combatentes que continua a exercer o poder no Zimbabwe.

As ruas de Harare, expectantes e tensas durante os primeiros dias da detenção, perderam o medo e lançaram os gritos contidos durante os últimos 37 anos. Muitos falavam do “renascimento” do país e até de uma nova independência.

Mas nenhum golpe terá sido tão profundo como aquele que lhe foi aplicado este domingo. Coube à ZANU-PF, o partido único que controlou as esferas do poder desde a independência, a machadada final na era de Mugabe. Os 200 delegados do Comité Central não hesitaram em afastar o seu líder histórico do cargo de primeiro secretário, expulsando pelo meio a primeira-dama Grace Mugabe (que era líder da estrutura feminina do partido) e outros dirigentes que lhe eram próximos, acusados de conspiração e de espalhar “discurso de ódio”.

Ao anúncio da demissão de Mugabe seguiram-se festejos, cânticos e danças. O título de “Presidente” foi substituído pelo de “camarada”. A humilhação ficou completa com a fixação de um ultimato para que Mugabe apresentasse a sua demissão da presidência, de forma a evitar a abertura de um processo de destituição pelo Parlamento - deram-lhe até ao meio-dia de segunda-feira.

Mnangagwa à espera

À espera continua Edward Mnangagwa, o homem no centro do furacão, que foi designado como sucessor de Mugabe na liderança da ZANU-PF e deverá assumir o cargo de Presidente interino. Foi a sua exoneração, no início do mês, que desencadeou a crise política. A demissão de Mnangagwa foi vista como produto da ambição de Grace, que há muito tentava arregimentar apoios no seio do partido tendo como objectivo suceder ao marido. Mas a ascensão da primeira-dama, muito impopular junto da população, nunca foi vista com bons olhos pelos veteranos”, que preferem Mnangagwa.

Conhecido como “crocodilo”, Mnangagwa passou a vida na sombra do Presidente, numa relação vem dos tempos da luta pela independência. Exerceu vários cargos-chave nas últimas décadas, sobretudo na área da segurança interna, e teve um papel decisivo durante o massacre de Matabeleland, no início dos anos 1980, onde o movimento de libertação rival da ZANU foi esmagado à custa de milhares de mortos.

Mais do que uma genuína mudança política, o processo que levou ao fim da era de Mugabe mais não é do que o produto de uma luta interna pelo poder, escreve o editor para a África do Guardian, Jason Burke. “A ZANU-PF e os seus aliados no Exército lançaram a sua tomada do poder para afastar uma facção ambiciosa que ameaçava a sua posição, não porque desejam promover reformas estruturais que ponham em causa os seus esquemas lucrativos de enriquecimento”, nota o jornalista.