Massoud Barzani: "A comunidade internacional vai assistir impávida ao nosso estrangulamento?"

O escritor francês entrevistou o presidente curdo no dia seguinte ao referendo em que, por esmagadora maioria, os curdos do Iraque disseram querer ser um estado independente.

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Massoud Barzani Azad Lashkari/Reuters

Quarta-feira, 27 de Setembro. Massoud Barzani, presidente do Curdistão iraquiano e comandante dos peshmerga, começa a nossa entrevista com uma pequena anedota: “Contaram-me uma vez que, na noite seguinte à vitória da França sobre a Alemanha, um dos vossos estadistas disse, ‘agora já posso morrer’. É assim que me sinto hoje.”

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Quarta-feira, 27 de Setembro. Massoud Barzani, presidente do Curdistão iraquiano e comandante dos peshmerga, começa a nossa entrevista com uma pequena anedota: “Contaram-me uma vez que, na noite seguinte à vitória da França sobre a Alemanha, um dos vossos estadistas disse, ‘agora já posso morrer’. É assim que me sinto hoje.”

Os conselheiros que rodeiam Barzani no palácio presidencial de Salahaddin, a Norte de Erbil, apressam-se a observar que o resultado do referendo é apenas o início da batalha e que, aos 71 anos, o presidente é demasiado importante para a população para se deixar levar por esses pensamentos. Mas isso não o demove.

“Já há meio século que ando a combater. Com o meu povo, passei por assassínios em massa, por deportações, por gaseamentos. Lembro-me de pensarmos que estávamos condenados . Lembro-me de alturas, como em 1991 depois da primeira guerra contra Saddam, em que as democracias vieram em nosso auxílio mas deixaram os ditadores no poder, obrigando-nos a voltar para as sombras. Durante essas décadas de resistência, de esperanças desfeitas e renascidas, nunca imaginei chegar a ver o dia em que, após um processo eleitoral exemplar que não ficou manchado por incidentes graves ou mesquinhas disputas políticas, o meu povo pudesse finalmente reunir-se e mostrar ao mundo a sua vontade de ser livre e democrático. Esse dia chegou, e é o dia mais feliz da minha vida. É como se tudo o que eu fiz e tudo o que eu sonhei, todas a desventuras por que passámos juntos, convergissem nesse preciso momento.”

Ao ouvir as suas palavras, não consigo deixar de pensar em todos os homenzinhos que, sentados nas suas secretárias em embaixadas ou ministérios, previram até ao último minuto que Barzani iria aceitar adiar o referendo. Penso no acordo que Rex Tillerson lhe ofereceu cinco dias antes da votação, a cujo rascunho tive acesso. De certa forma, era um bom acordo: em troca do adiamento do seu sonho, Barzani receberia elogios generalizados, massiva assistência económica e uma garantia americana. Mas não tomava em conta o orgulho invencível do velho leão do Curdistão. A proposta mostrava uma total falta de compreensão sobre a ideia-base que o persegue, uma ideia que dá significado não só à sua vida, mas também ao destino do seu povo. Como se lesse os meus pensamentos, continua:

“Preciso que compreenda. Nas últimas semanas, à medida que fui pressionado por todos os lados a deixar cair o referendo, a minha preocupação era, chegada a minha hora, poder olhar nos olhos aqueles que me elegeram. Não só os vivos, mas também todos os que deram a sua vida pela causa curda. No último comício, na passada quinta-feira no Estádio Hariri em Erbil, a minha obsessão era só uma: não me sentir embaraçado por me apresentar perante eles.”

Volto a interromper, lembrando-o que há quem o acuse de promover o referendo para prolongar o seu tempo no poder. Recordo-o de uma das últimas vezes que estivéramos juntos. Tinha sido na linha da frente, na noite anterior à ofensiva contra o Estado Islâmico [outro nome para o Daesh], em Sinjar. Nessa ocasião, este liberal pró-Ocidente, pró-Estados Unidos, pró-Israel, dissera-me que o seu modelo era o general norte-vietnamita Vo Nguyen Giap. Perguntei-lhe se não seria agora altura de transformar o Giap que havia em si num Ho Chi Minh, uma altura em que o estratega tinha de dar lugar ao estadista que constrói uma nova nação – aquilo que o Curdistão tinha votado no dia 25 de Setembro?

“Não”, insistiu, roçando a impaciência. “Ontem à noite, quando fechou a última urna de voto na aldeia mais remota das montanhas Barzan, a primeira coisa que fiz foi organizar os meus pensamentos junto à campa de Mustafa Barzani, meu pai e pai da nação curda. Não se esqueça do que lhe disse no campo de batalha em Sinjar. Tal como ele, toda a vida pertenci aos peshmerga, e isso sempre me pareceu mais importante do que ser presidente. Essa opinião não mudou. Portanto, podem contar comigo para explicar aos nossos vizinhos o significado do nosso referendo pacífico, isso sim. Mas Ho Chi Minh, isso não, honestamente. O Curdistão precisa de uma geração de líderes jovens.”

O seu olhar endurece ao mencionar os “vizinhos” – Turquia, Irão e Iraque –, cujos avisos e ostentação de poder militar se intensificaram nas horas anteriores ao referendo.

“Não cometemos qualquer crime. Não violámos nem as leis federais do Iraque nem a Carta das Nações Unidas. E eu repeti variadas vezes, até no próprio dia da votação, que o nosso objectivo não era uma rápida e unilateral declaração de independência, mas antes a abertura de negociações francas com Bagdad, e isso vai demorar o tempo que for preciso. Não é difícil compreender como, quando os nossos vizinhos respondem desta maneira, quando reagem ao nosso voto com ameaças e chantagem, só podemos concluir que estávamos certos em, depois de tantos séculos de traições, sermos cautelosos e querermos decidir o nosso futuro por nós.”

Manifesto em voz alta a minha preocupação pela seriedade dessas ameaças, chamando a sua atenção para a trágica geografia que envolve o seu país, tão novo quanto antigo. Menciono os exemplos da Bósnia sob o bloqueio sérvio, do ataque a Israel logo após a fundação, de outro Massoud, o líder rebelde afegão, sitiado em Panjshir.

“Cada coisa a seu tempo.”

Fala Mustafa, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, que faz de intérprete improvisado e tem uma tendência, comum entre os líderes curdos, para falar americano com sotaque de Oxford. Explica por outras palavras: “Don’t meet trouble half way.” [“Não vamos pensar nesses problemas quando o caminho ainda vai a meio.”]

Durante a conversa, sinto a determinação de Barzani em contrariar com uma calma inabalável a atitude febril do trio Bagdad-Ancara-Teerão, que não deixa passar um dia sem anunciar novas represálias.

“Cada coisa a seu tempo, é o que costumo dizer. A escalada das ameaças ainda agora começou. E eu espero com todo o meu coração que eles não as concretizem. Mas se o fizerem…”

Barzani parece estar a pesar as palavras.

“Se o fizerem, se tentarem asfixiar-nos, fechar os nossos aeroportos ou cortar as nossas trocas comerciais, então digo-lhe: já vimos outros como eles. Já fomos torturados, assassinados, deslocados. Tanto nos anos das montanhas como há poucas semanas na linha de mil quilómetros que quase sozinhos defendemos contra o Estado Islâmico, pagámos um preço alto, muito alto, pelo nosso amor à liberdade. Portanto, acredite em mim, nenhuma medida hostil, nenhuma represália colectiva podem ser mais duras do que o que já enfrentámos. E outra coisa…”

Vira-se para os seus companheiros, como se os estivesse a avaliar.

“Cada um de nós tem gravado na memória o conhecimento em primeira mão das piores coisas que o Homem pode fazer ao seu semelhante. Todos nós sabemos bem isso. Mas esses tempos acabaram. Nunca mais deixaremos que nos tratem dessa forma. Nunca mais deixaremos que ataquem a nossa dignidade e saiam impunes. E quanto à comunidade internacional…”

Agora olha directamente para mim, com um olhar de desafio.

“Suponhamos que os nossos vizinhos levam por diante os seus irrazoáveis planos. Será que a comunidade internacional vai assistir impávida ao nosso estrangulamento? Será que vai ficar a ver o espectáculo, como quando fomos gaseados? Lembra-se do que aconteceu em Fazlya no ano passado, no início da batalha de Mossul? Estava lá, não estava?”

Sim, de facto estava lá com a minha equipa de filmagens. Uma unidade peshmerga foi alvo de uma emboscada. Seguiram-se várias horas de combate feroz. Não obstante os repetidos apelos do comandante da coluna e em violação dos compromissos da coligação, não receberam qualquer apoio aéreo. Nessa noite, no seu bivaque nas montanhas Zartik, o presidente ferveu de raiva.

“A coligação tinha feito uma promessa, mas nesse dia não a cumpriu. Nessa altura, só se falava dos peshmerga. A coragem dos peshmerga. O sacrifício dos peshmerga. Mas quando os peshmerga precisaram de ajuda ninguém apareceu. Até hoje, ainda ninguém me deu uma explicação.”

A recordação do incidente parece reavivar a ira que sentiu nesse dia. Mas rapidamente recupera a compostura.

“Não consigo dizer isto vezes suficientes: nós queremos negociações e diálogo. Repetimos as vezes que forem precisas que só procuramos a independência dos curdos do Iraque; não temos qualquer intenção de nos envolvermos nos assuntos dos nossos países vizinhos. Salientei isto ao Presidente Macron quando ele me ligou na semana passada, no regresso de Nova Iorque. Ele mostrou-se amigável e compreensivo.”

Sei agora que Emmanuel Macron se ofereceu para que a França sirva de mediador. Sei também que o Presidente francês disse a Massoud Barzani estar preparado para o convidar, o mais depressa possível, para se encontrar em Paris com o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi. A cara de Barzani ilumina-se.

“Tenho confiança no Presidente Macron e na sua liderança. Os nossos países têm uma relação especial. Diga ao seu Presidente que todos os curdos se sentem, até certo ponto, filhos de uma grande dama francesa, Danielle Mitterrand. Sinto-me honrado por poder aceitar esse convite, e por mim posso ir já a Paris amanhã. Espero que o Sr. Abadi possa dizer o mesmo.”

Tradução de António Domingues