Onze universidades juntam-se para criar centro português de criomicroscopia electrónica

Grupo de cientistas portugueses quer trazer para o país um aparelho de microscopia de última geração (que valeu o Nobel da Química de 2017) e que pode custar mais de sete milhões de euros.

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O investigador Pedro Matias DR

O investigador Pedro Matias, da Unidade de Cristalografia de Macromoléculas do Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), da Universidade Nova de Lisboa, conhece bem o terreno explorado pelos três cientistas que ganharam o Nobel da Química de 2017, anunciado esta quarta-feira. Aliás, entre os projectos em que está envolvido, destaca um que envolve uma proteína humana chamada RuvBL2 que está implicada em vários tipos de cancro e que quer estudar com a criomicroscopia electrónica. Explica as vantagens desta nova técnica e menciona alguns avanços que pode vir a permitir em vários campos, desde a indústria farmacêutica e o desenvolvimento de novos fármacos até ao conhecimento básico sobre o funcionamento das células. 

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O investigador Pedro Matias, da Unidade de Cristalografia de Macromoléculas do Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), da Universidade Nova de Lisboa, conhece bem o terreno explorado pelos três cientistas que ganharam o Nobel da Química de 2017, anunciado esta quarta-feira. Aliás, entre os projectos em que está envolvido, destaca um que envolve uma proteína humana chamada RuvBL2 que está implicada em vários tipos de cancro e que quer estudar com a criomicroscopia electrónica. Explica as vantagens desta nova técnica e menciona alguns avanços que pode vir a permitir em vários campos, desde a indústria farmacêutica e o desenvolvimento de novos fármacos até ao conhecimento básico sobre o funcionamento das células. 

Por que é que criomicroscopia electrónica é importante e o que trouxe de diferente? É uma tecnologia que se pode considerar revolucionária?

A criomicroscopia electrónica é muito importante porque permite obter directamente imagens dos objectos que se pretende estudar, quer sejam moléculas individuais ou células inteiras. Num microscópio electrónico, em vez de luz visível utiliza-se um feixe de electrões para iluminar os objectos que se pretendem estudar. A utilização de microscópios electrónicos para a visualização de biomoléculas iniciou-se no século passado, com a contribuição fundamental de Richard Hendersen. Contudo, quase de imediato os investigadores se aperceberam de que a exposição de moléculas biológicas a feixes de electrões com a intensidade necessária para obter imagens de boa qualidade, onde se distingam os átomos, rapidamente levavam à destruição da amostra antes que fosse possível obter essa imagem.

Para evitar isso, uma solução é congelar a amostra, preservando todas as suas características, usando de arrefecimento ultra-rápido a 196 graus Celsius negativos que impede a formação de cristais de gelo. O desenvolvimento dessa técnica teve o contributo fundamental de Jacques Dubochet.

Adicionalmente, utilizaram-se feixes com muito menor intensidade para minimizar os danos produzidos, assim como detectores extremamente sensíveis desenvolvidos recentemente. Contudo, isso levou a que as imagens obtidas fossem de muito menor qualidade. Imagine-se a famosa Caverna de Platão, em que o filósofo se encontra de costas para a entrada, apercebendo-se apenas do que o rodeia através das sombras projectadas nas paredes da caverna. Ou seja, apenas vê uma representação difusa da realidade – a sombra da molécula biológica – e não se consegue aperceber de toda a realidade – neste caso, a forma completa da molécula a três dimensões.

A solução para se capturar a realidade a partir das sombras do feixe de electrões teve o contributo fundamental de Joaquim Frank, que desenvolveu algoritmos de processamento em que as imagens deliberadamente obtidas com muito baixa qualidade são analisadas para nelas identificar e combinar as dezenas ou centenas de milhar de imagens de cada molécula, permitindo a obtenção de uma imagem tridimensional da molécula em estudo. Podemos dizer que os algoritmos de processamento de imagens realizam a combinação das “sombras” produzidas pelo feixe de electrões incidente sobre as biomoléculas em formas tridimensionais, correspondentes à “realidade”. No fundo, é sair da caverna escura do desconhecido, em que só se pode ver parte das coisas, para a luz do conhecimento tridimensional.

É nestes quatro pilares que assenta a revolução tecnológica que está na base do extraordinário desenvolvimento da criomicroscopia electrónica aplicada a sistemas biológicos.

Pode dar exemplos de aplicações desta tecnologia em diversas áreas?

Uma aplicação que pode vir a tornar-se extremamente importante é a sua utilização pelas empresas farmacêuticas na descoberta e no desenvolvimento de novos fármacos. Por outro lado, várias empresas farmacêuticas estão a investir fortemente no desenvolvimento de biofármacos baseados em anticorpos. Actualmente, este processo assenta fundamentalmente na cristalografia de raios X, que requer a produção de cristais de biomoléculas com os ligandos que poderão vir a originar novos medicamentos. O problema com esta tecnologia é que nem sempre as biomoléculas-alvo dos fármacos a desenvolver são facilmente cristalizáveis, pelo que a criomicroscopia electrónica é uma alternativa extremamente atraente. Um pormenor adicional é que quanto maior é o tamanho da molécula que se pretende estudar tanto mais fácil é a obtenção experimental de uma imagem tridimensional com grande detalhe.

Ao nível da investigação mais fundamental pode-se referir estudos em que se obtêm imagens detalhadas de toda uma célula e seus organelos, o que permite entender melhor aspectos do seu funcionamento. Neste caso, é necessário imobilizar as células numa matriz inerte e produzir secções que são analisadas uma a uma, pois o feixe de electrões não consegue atravessar a célula de um extremo ao outro. A imagem da célula é obtida combinando as imagens das diferentes secções. 

A criomicroscopia electrónica possibilita ainda a obtenção de imagens tridimensionais de biomoléculas difíceis de cristalizar, como por exemplo proteínas associadas a membranas celulares, de extrema importância para o funcionamento da célula (por exemplo, no transporte de iões ou pequenas moléculas através da membrana celular). 

Como antevê a evolução futura desta tecnologias e das suas aplicações?

Na minha opinião, vamos continuar a assistir a desenvolvimentos em três dos quatro pilares acima referidos: processamento de imagem, métodos para a preparação das amostras e melhores detectores. No entanto, não prevejo a curto prazo nenhum salto qualitativo semelhante ao que deu agora origem à atribuição deste Prémio Nobel. A sua aplicabilidade vai expandir-se de certeza, alargando o seu impacto, quer ao desenvolvimento científico quer à sua aplicação prática na criação de valor económico.

Existem aparelhos de criomicroscopia electrónica em Portugal? Onde? São caros – quanto custam?

Infelizmente, ainda não. Existem alguns microscópios electrónicos em Portugal que são utilizados para estudo de amostras biológicas, por exemplo no Instituto Gulbenkian de Ciência em Oeiras, no Instituto de Biologia Molecular e Celular no Porto e na Universidade de Coimbra. No entanto, estes instrumentos não têm as potencialidades dos instrumentos de última geração que têm dado origem aos resultados mais excitantes e revolucionários.

Um aparelho de última geração para criomicroscopia electrónica pode custar mais de sete milhões de euros. Para além do instrumento, é necessário dispor de uma sala especial com chão antivibrações e atmosfera controlada para impedir as contaminações de poeira e as flutuações de temperatura.

Neste momento, um grupo de cientistas portugueses, entre os quais me incluo, está a trabalhar numa iniciativa com vista à criação de um centro nacional para criomicroscopia electrónica aplicada às ciências da vida, o que abrange desde biomoléculas até células e tecidos celulares. Este grupo conta com a participação de cientistas de 11 universidades e institutos do Norte a Sul de Portugal: Universidade Nova de Lisboa, Universidade do Porto, Instituto Gulbenkian de Ciência, Laboratório Internacional de Nanotecnologia, Universidade do Minho, Universidade do Algarve, Universidade de Coimbra, Universidade de Lisboa, Universidade da Beira Interior, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e Fundação Champalimaud.

Usa esta tecnologia e, nesse caso, para investigar o quê exactamente?

O meu interesse nesta tecnologia já tem alguns anos, mas só muito recentemente comecei a desenvolver algum trabalho nesta área. O projecto de doutoramento de uma das minhas alunas assentou no estudo de uma proteína humana chamada RuvBL2 que está implicada em vários tipos de cancro, e pretendíamos determinar a sua estrutura tridimensional por cristalografia de raios X. Aconteceu que durante muito tempo os cristais que obtínhamos desta proteína não produziam imagens de difracção com qualidade suficiente para essa finalidade, e por isso estabelecemos colaborações com grupos em Madrid e em Brno na República Checa, para a determinação da estrutura tridimensional da RuvBL2 por criomicroscopia electrónica.

O ITQB é uma das instituições de referência em Portugal na área da biologia estrutural, nas suas vertentes de cristalografia de raios X, ressonância magnética biomolecular e simulação biomolecular. O desenvolvimento da criomicroscopia electrónica em Portugal como metodologia complementar das existentes teria por isso um enorme impacto na nossa investigação, pois permitiria o reforço do know-how científico e tecnológico em todas as áreas de investigação ligadas às ciências da vida. O mesmo certamente se passará nas outras instituições que trabalham nesta área.