O curioso caso do testamento da D. Eugénia

Benemérita deixou em 1982 a fortuna à Igreja madeirense, com a condição que fosse utilizada para o auxílio a doentes cancerosos. Durante 30 anos o testamenteiro quis saber se a vontade de Eugénia Bettencourt estava ser cumprida. Morreu no final do ano passado, sem resposta.

Foto
“Tudo indica que nada foi aplicado segundo a vontade de Eugénia Bettencourt”, diz João Lizardo, advogado do testamenteiro Rufino Teixeira GREGÓRIO CUNHA

Funchal, 8 de Janeiro de 1982. Eugénia Bettencourt morre aos 98 anos. Solteira, católica fervorosa, sem descendência nem familiares próximos, dona de um património considerável – só os prédios edificados valiam à data perto de 165 mil contos (820 mil euros) –, deixa tudo em testamento à Diocese do Funchal. Uma condição: que o património, que incluía também algumas propriedades espalhadas pela ilha (uma delas viria a ser expropriada em 2006 por 1,3 milhões de euros), fosse aplicado em obras de assistência a doentes cancerosos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Funchal, 8 de Janeiro de 1982. Eugénia Bettencourt morre aos 98 anos. Solteira, católica fervorosa, sem descendência nem familiares próximos, dona de um património considerável – só os prédios edificados valiam à data perto de 165 mil contos (820 mil euros) –, deixa tudo em testamento à Diocese do Funchal. Uma condição: que o património, que incluía também algumas propriedades espalhadas pela ilha (uma delas viria a ser expropriada em 2006 por 1,3 milhões de euros), fosse aplicado em obras de assistência a doentes cancerosos.

Para garantir essa vontade, Eugénia Bettencourt nomeou testamenteiro, e por conselho deste, Rufino Teixeira, antigo presidente da Câmara de Machico e descendente de Tristão Vaz Teixeira, um dos descobridores do arquipélago. Nas mais de três décadas seguintes, Rufino Teixeira lutou em tribunal pelo direito de saber de que forma é que a Diocese do Funchal estava a gerir a herança recebida.

Apresentou queixa à Procuradoria-Geral da República em 1989. Falou com a Alta Autoridade Contra a Corrupção no ano seguinte. Encontrou-se, nesse mesmo ano, com o Perfeito da Sagrada Congregação dos Bispos no Vaticano. Foi ao provedor de Justiça e regressou à Procuradoria-Geral da República em 1996. Todos responderam - com excepção do Vaticano que nada disse - mas o caso não andava.

Cansado e sem respostas satisfatórias, em 2002 tenta outra abordagem. Pede em tribunal a prestação de contas da parte da diocese, mas foi perdendo em sucessivas instâncias judiciais porque a juízes não consideravam a herança como um legado pio, como tal não existia obrigação de prestação de contas.

Os tribunais entenderam que os bens deixados por Eugénia Bettencourt não estavam totalmente identificados, e como tal, em termos jurídicos estávamos perante um herança e não um legado, que acontece quando os bens herdados estão determinados. A definição de legado pio remonta à Idade Média e é utilizada quando o testamento é destinado à criação, manutenção ou desenvolvimento de obras de cariz social ou análogas.

Processo chegou ao Supremo

O processo chegou ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que voltou a dar razão aos herdeiros, mas no acórdão Rufino Teixeira viu uma oportunidade. O testamenteiro, escreveram os juízes, tem legitimidade para exigir da diocese o cumprimento do "referido encargo testamentário por via da competente acção de cumprimento". Resumindo, Rufino Teixeira não podia pedir contas à Diocese (“porque o proprietário não presta contas do que é seu”, lia-se no acórdão do STJ), mas tinha legitimidade para questionar a Igreja sobre o cumprimento do testamento. A diocese teria assim que responder às questões específicas colocadas pelo testamenteiro, sobre o que estava a fazer com o que tinha herdado.

Iniciou então novo processo, em 2007, até que nove anos depois, conseguiu a primeira vitória. O Tribunal da Relação de Lisboa dá-lhe razão e manda a Diocese do Funchal explicar o destino do património herdado. Estamos em Agosto de 2016, e em tribunal, pela primeira vez apesar da pressão da opinião pública regional – várias notícias e artigos de opinião foram publicados na imprensa local a questionar a Igreja -, as autoridades religiosas madeirenses aceitam falar publicamente sobre a herança de Eugénia Bettencourt.

Explicaram que a sede da Obra Sócio-caritativa D. Eugénia foi instalada num dos edifícios herdados, mas admitiam que a actividade não era contínua e a essa data estava encerrada, a aguardar a nomeação de uma nova direcção. Sobre uma quinta no Caminho da Achada, a diocese indicou que era utilizada para actividades diocesanas, garantindo que entre essas actividades estava a ajuda a doentes cancerosos.

Prédio vendido ao Exército

Outro dos prédios deixados foi vendido ao Exército, que instalou os serviços de recrutamento da Zona Militar da Madeira. O valor da venda, 350 mil euros, foi reinvestido em habitação, cuja receita do aluguer revertia exclusivamente para a ajuda a pessoas com cancro.

Já um terreno de 14 mil metros quadrados, na zona do Amparo, onde o governo de Alberto João Jardim construiu o Arquivo Regional, foi expropriado por 1,3 milhões de euros. Uma verba, garantiu a Diocese, que ainda não tinha sido paga. Por explicar ficam os 15 terrenos no concelho vizinho de Câmara de Lobos e outros dois edifícios na baixa do Funchal. E mesmo assim, o que foi dito não convenceu Rufino Teixeira.

O que a diocese dizia ser a sede da Obra D. Eugénia era conhecida publicamente como um dormitório de padres. A única actividade conhecida na quinta na Achada, rebatizada de Casa de Emaús (nome inspirado no local onde, segundo a Bíblia, Jesus apareceu a dois discípulos após a ressurreição), era de retiros pontuais e encontros do Conselho Presbiteral. E sobre o dinheiro da expropriação do terreno no Amparo o testamenteiro não compreendia as razões porque não tinha sido ainda, cobrado passados 10 anos.

Entrou com novo processo em Setembro de 2016, questionando a “gestão e a inércia” da Diocese do Funchal, mas não viria a saber o resultado. Morreu um mês depois. Numa carta, publicada em 2011 no Diário de Notícias da Madeira, por ocasião dos 500 anos da diocese, deixava um aviso. “Desejo que todos saibam que, com o meu falecimento, terminarão estes quase 30 anos de luta e, então, a diocese jamais cumprirá a vontade da Senhora Dª. Eugénia Bettencourt.”

Tinha razão, pelo menos em relação à luta. João Lizardo, o advogado que pegou no caso em 2002, tentou prosseguir o processo após a morte do testamenteiro, mas o tribunal declarou que os direitos de Rufino Teixeira não eram transmissíveis, como tal a diocese já não estava obrigada a justificar o destino da herança a ninguém.

Filhos queriam continuar com o caso

“Acabou-se. Costumo dizer que se o Sr. Rufino tivesse morrido umas semanas depois, podíamos ter conhecido alguma verdade sobre o destino da herança”, diz ao PÚBLICO o advogado, explicando que os filhos de Rufino Teixeira queriam continuar com o caso. Até porque, diz, existem muitas “pontas soltas”.

Além dos prédios rústicos e dos edifícios, faltou apurar o destino dado ao espólio da casa onde a benemérita vivia com duas criadas. “E ao dinheiro que seguramente existia no banco, e que nunca foi quantificado”, acrescenta o advogado, enquanto procura no processo os inventários feitos à data.

Pratas e jóias, três serviços completos da Companhia das Índias, vinhos velhos da Madeira, peças de cristais e outras porcelanas valiosas e um serviço de loiça decorado a ouro com 270 peças ostentando o brasão da família de Bartolomeu Perestrelo, outro dos descobridores do arquipélago, cuja filha, Filipa, foi casada com Cristóvão Colombo.

Tudo isto desapareceu. Ou melhor, “anda por aí”. Lizardo garante que já viu algumas peças a decorar o Paço Episcopal. O serviço da Companhia das Índias é usado pela Quinta Vigia, sede da Presidência do Governo Regional, em ocasiões especiais.

A diocese, durante o processo que atravessou a vigência de três bispos, foi optando pelo silêncio, interrompido apenas no início do ano passado com um esclarecimento em reacção à decisão do Tribunal da Relação. Na altura, rejeitou que os direitos do testamenteiro tivessem sido alguma vez negados, insistindo que a “memória e a vontade” de Eugénia Bettencourt estava a ser cumprida.

“Já foram explicados ao testamenteiro os benefícios concretos distribuídos aos beneficiários da deixa [herança] testamentária. Só que ele não concorda com essas aplicações e distribuição, sendo de opinião que as aplicações e distribuição devem ser diferentes. Se a senhora D. Eugénia quisesse que a distribuição fosse feita de acordo com a vontade deste testamenteiro, então tê-lo-ia designado como beneficiário, e não como testamenteiro”, escreveu numa nota publicada na página oficial da Igreja madeirense.

Na mesma nota, a diocese insiste que o “legado tem sido cumprido pela forma que melhor foi entendida”, admitindo que essa pode não ser do “agrado de todos”. Mas, continua, a forma de aplicar esses valores "varia de acordo com a sensibilidade e a consciência de quem os gere".

Diocese "nunca recusou prestar informações"

Ao PÚBLICO, o gabinete de informação da Diocese, liderada por D. António Carrilho, garante que nunca “se recusou a prestar informações” sobre a aplicação da herança. “A obra sócio-caritativa, todos os anos, publicava as suas contas e esclarecia quais os benefícios concretos que concedia”, sublinha o Paço Episcopal, precisando que desde 1987 já apoiou doentes cancerosos com mais de meio milhão de euros, ajudando todos os meses entre 30 a 70 pessoas.

Os relatórios de contas mais recentes estão na posse da diocese, e a consulta está dependente de uma autorização da Igreja madeirense, autorização que não foi dada ao PÚBLICO.

“Como refere a lei e foi declarado pelos tribunais, o testamenteiro garante o cumprimento do legado, isto é, assegura a entrega dos bens ao herdeiro mas já não tem poderes para avaliar a forma como o encargo é cumprido ou para vigiar e fiscalizar, momento a momento, caso a caso, se a forma escolhida pelo herdeiro para cumprir o encargo é a melhor”, defende a diocese, acrescentando que estão a “decorrer os procedimentos legais” para que possa receber os 1,3 milhões de euros relativos à expropriação do terreno no Amparo.

As dúvidas de Rufino Teixeira assentavam também na inexistência de apoio ao Núcleo Regional da Madeira da Liga Portuguesa Contra o Cancro, através do legado deixado por Eugénia Bettencourt. Do processo, consta uma carta com data de Janeiro de 2013, em que a presidente do organismo, Isabel França Aguiar, garante que a Liga não recebeu qualquer contribuição por parte da diocese, apesar de “por mais que uma vez” ter tido a iniciativa de falar com a Igreja madeirense sobre essa possibilidade.

A diocese é taxativa. “Com certeza que existem muitas iniciativas válidas de apoio aos doentes cancerosos e que mobilizam diversas instituições cívicas e sociais. A Obra D. Eugénia também propicia, com os rendimentos que aufere, apoio a pessoas afectadas por essa doença”, adianta ao PÚBLICO o gabinete de D. António Carrilho.

“Tudo isto é demasiado vago. Todas as informações dadas e as que ficaram por dar. Tudo indica que nada foi aplicado segundo a vontade de Eugénia Bettencourt”, sintetiza João Lizardo, fechando o dossier onde se amontoam recortes de jornais, o testamento original e as sucessivas decisões judiciais. “Acabou.”