A voz incómoda dos padres na Madeira, onde religião e política se cruzam

José Luís Rodrigues foi convidado duas vezes para a política. Em 2013 foi a primeira escolha do PS e do Bloco para a Câmara do Funchal, e dois anos depois convidado para o parlamento regional. Não caiu (para já) na tentação de ser mais um padre madeirense na política.

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Quando em Junho do ano passado, no meio de mais uma crise no sistema de saúde regional – com demissões e notícias de falta de medicamentos no principal hospital -, o padre José Luís Rodrigues escreveu que o governo madeirense estava doente, Miguel Albuquerque sentiu necessidade de se explicar.

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Quando em Junho do ano passado, no meio de mais uma crise no sistema de saúde regional – com demissões e notícias de falta de medicamentos no principal hospital -, o padre José Luís Rodrigues escreveu que o governo madeirense estava doente, Miguel Albuquerque sentiu necessidade de se explicar.

José Luís Rodrigues não respondeu à carta enviada pelo governante. Não quis “alimentar polémicas”, mas a atenção dada pelo presidente do executivo regional a um texto publicado num blogue, que foi depois partilhado e comentado no Facebook, mostra o peso que a voz do pároco de São Roque, uma das freguesias do Funchal, tem no arquipélago. E que os políticos não ignoram.

De tal modo que, em 2013, quando o PS-Madeira tentava alinhavar uma coligação partidária encabeçada por um independente para conquistar a Câmara do Funchal, foi com o padre de São Roque que falou primeiro. “Antes de Cafôfo [o actual presidente da autarquia, que acabou por liderar a coligação] falaram comigo. Penso que ele deve ter sido a segunda ou terceira escolha”, conta ao PÚBLICO. O pároco ainda se reuniu “várias vezes com o PS e o PND”, mas, depois de reflectir “durante algum tempo”, acabou por recusar.

O homem que lidera as paróquias de São Roque e São José justifica a decisão com a “falta de estofo” para assumir uma autarquia, mas em 2014 voltou a ser sondado quando o mesmo PS e o PND ensaiavam nova coligação, agora para as regionais. Foi convidado para integrar as listas num lugar elegível. “Sentiu-se tentado”, admite. Mas à reflexão seguiu-se uma nova recusa. “É preciso fazer a distinção entre a vida partidária, que não me atraiu, e a intervenção política na sociedade”, ressalva, sublinhando que a função clerical não é incompatível com a política.

Pelo menos na Madeira não faltam exemplos. E se a voz de José Luís Rodrigues é uma espécie de consciência social que “incomoda os poderes instalados”, quando vai escrevendo sobre a “pobreza” e denunciando a “exclusão” sem saltar para a política activa, outras há que já ultrapassaram essa barreira, para desconforto da Diocese do Funchal, tradicionalmente próxima do poder vigente no arquipélago. Mas a passagem para a intervenção política é “uma opção totalmente legítima”, reforça José Luís Rodrigues.

O exemplo mais recente, e também o mais mediático pela candidatura presidencial de 2016, é o de Edgar Silva. O coordenador do PCP na Madeira é deputado regional desde 1996. O padre Edgar, como lhe chamou, durante a campanha e depois, em tom depreciativo, o PSD próximo de Jardim, acabou por se desvincular do sacerdócio um ano depois de ser eleito para a assembleia regional, libertando a diocese do embaraço.

O incómodo já vinha de trás, da altura em que o jovem padre andava pelo Funchal a defender os "miúdos das caixinhas" - crianças de Câmara de Lobos que pediam esmola aos turistas nas esplanadas da baixa da cidade. Foi aí que Edgar Silva se fez político, seguindo as pisadas de outros “padres vermelhos” da ilha.

Primeiro foi Martins Júnior. Da paróquia da Ribeira Seca, o pároco conquistou Machico contra a vontade das autoridades religiosas regionais. Foi presidente da câmara entre 1989 e 1997, primeiro pela UDP e depois pelo PS. Pelo meio viu a igreja e o salão paroquial serem cercados pela polícia. Foi suspenso "a divinis" logo em 1977 pelo bispo, pelas ligações ao Partido Comunista. Suspensão reconfirmada em 1985, pelo novo bispo. Foi acusado pelo Ministério Público pela prática, de forma continuada, do crime de “abuso de designação, sinal ou uniforme”, mas como era deputado regional – foi eleito sete vezes (entre 1976 e 1992 pela UDP e entre 1996 e 2008 pelo PS) -, quando se sentou no banco dos réus, já não foi julgado porque, com a nova Concordata, o crime de que vinha acusado já não existia.

No parlamento regional, Martins Júnior cruzou-se, em 1992, com Mário Tavares. Outro padre que saltou para a política pela mão do PCP. Durante quatro anos foi a única voz comunista na assembleia madeirense. Foi depois candidato à Junta de Freguesia do Jardim da Serra, em Câmara de Lobos, e à câmara municipal local, mas sem sucesso.

“Outros tempos”, recorda José Luís Rodrigues, também ele nascido no Jardim da Serra. Cresceu sem água potável, sem saneamento básico. “Provavelmente, foi esse clima que me fez ganhar consciência política”, recorda. É também uma voz crítica da Diocese e da forma como, durante largos anos, esta se colocou à sombra do jardinismo. “É preciso que se diga: neste momento, a situação está melhor. Há mais liberdade para o debate, as pessoas falam abertamente, mas como sociedade ainda temos um caminho a percorrer.” Exemplo: a queda do carvalho no Monte, que matou 13 pessoas. “A pressa com que se procurou um bode expiatório. A ideia de que sangue se lava com sague não poderia acontecer nos nossos dias.”